Os espanhóis votam no próximo domingo numas eleições históricas onde não são dois, mas quatro, os partidos que disputam a vitória. É o momento ideal para as formações emergentes se afirmarem como alternativa ao bipartidarismo espanhol, defende o politólogo Ignacio Sánchez-Cuenca.
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Em entrevista ao JN, o professor de Ciência Política na Universidade Carlos III de Madrid indica possíveis pactos pós-eleitorais e critica a ausência de debate sobre a arquitetura europeia durante a campanha.
Em pouco mais de um ano, Espanha passou do bipartidarismo para um cenário em que há quatro aspirantes a governar. Surpreendeu-o a rapidez com que dois novos partidos se impuseram no sistema político espanhol?
Era difícil de antecipar que isso pudesse acontecer. Mas é lógico que, uma vez que surgem novos partidos, o processo seja muito rápido porque este é o momento ideal para que se produza uma mudança política. Ambos entendem que estas eleições são uma ocasião única. Dentro de quatro anos, se a economia estabilizar, será muito difícil que novos partidos ganhem poder. Por isso, tanto Podemos como Ciudadanos têm muita urgência em ter bons resultados porque sabem que, se fracassarem agora, o mais provável é que acabem por desaparecer. Como são partidos que não estão ainda institucionalizados, que não têm uma presença territorial forte, sabem que têm que aproveitar as circunstâncias atuais.
Para além da crise económica, os dois novos partidos aproveitaram o momento de descrédito que se abateu sobre os dois partidos tradicionais.
Sim, por isso têm que se consolidar de forma rápida. Precisamente porque os indicadores de confiança nas instituições tocaram fundo em 2013, mas já estão a recuperar. Não voltámos aos níveis anteriores à crise. A monarquia, o parlamento e os partidos políticos continuam a ter avalizações negativas, mas mostram já estar novamente em fase crescente.
Pensa que, depois de entrarem no Congresso de Deputados, os partidos emergentes podem também converter-se em institucionais?
Acho difícil que um novo partido se institucionalize rapidamente e possa competir com os partidos antigos, salvo que haja uma catástrofe como na Grécia em que colapsou um sistema de partidos.
Na Grécia o Syriza substituiu o Pasok como partido maioritário na esquerda, mas manteve-se o bipartidarismo. O caso espanhol é bastante peculiar precisamente por apresentar neste momento quatro partidos tão equilibrados. Poderá prolongar-se no tempo?
É um sistema que não é estável. Terá que evoluir de alguma maneira. Não creio que um sistema com quatro partidos de tamanho similar possa manter-se no tempo. Pode dar origem a um leque de coligações tão vasto, que dará lugar a muita instabilidade. Mas tudo vai depender da distribuição final de lugares no Parlamento.
Pensa então que iremos assistir a um regresso do bipartidarismo?
Isso dependerá também do papel que tenham os novos partidos. Se tiverem um resultado excelente, poderão ter capacidade para lançar uma mudança do sistema eleitoral, porque este sistema favorece o bipartidarismo. É difícil, mas para eles é fundamental. Se não conseguirem mudar a lei eleitoral, terão muita dificuldade em perpetuar-se.
Como é improvável que haja uma maioria absoluta, os partidos terão que estabelecer pactos para poder governar. Será que destes pactos vão sair dois novos blocos partidários?
Do ponto de vista ideológico poderíamos falar de um bloco à esquerda com Podemos e PSOE e outro de direita com Ciudadanos e PP. Mas, por outro lado, também há muita afinidade entre Ciudadanos e PSOE. As diferenças entre estes dois provavelmente até são menores do que as diferenças entre PSOE e Podemos.
Em Portugal o PS e os partidos à sua esquerda chegaram recentemente a um acordo inédito. Em Espanha não poderia acontecer algo idêntico?
Penso que o aconteceu em Portugal mostra as diferenças entre o PS e o PSOE. Parece-me difícil que a aliança feita pelos socialistas portugueses possa acontecer em Espanha entre o PSOE e o Podemos. Neste momento, o partido de Pedro Sánchez está mais no centro do que o PS e vai preferir um pacto com o Ciudadanos ou até uma grande coligação com o PP a aliar-se com o Podemos. Haveria uma resistência enorme dentro do partido. Além disso, os socialistas portugueses tiveram uma posição mais crítica em relação às políticas de austeridade durante os últimos anos, chegando a abordar a questão da reestruturação da dívida. Esse é um assunto que o PSOE não coloca.
Que pactos vê então como mais plausíveis?
Tudo vai depender da posição relativa que obtiveram no dia 20 de dezembro. Se o PSOE ficar em segundo lugar, o mais lógico é que Ciudadanos apoie o número um, que seria o PP. Mas se o Ciudadanos for o número dois, pode tentar formar um governo de coligação com o PSOE. A incerteza é tal que há muitos cenários possíveis. Pode acontecer até uma coligação PP e PSOE. Mas esta é improvável porque a maioria da opinião pública não deseja uma coligação dos dois partidos tradicionais.
Pensa que o próximo governo será de apenas um partido ou uma coligação?
Penso que se o PP formar governo, será em minoria porque ninguém quer coligar-se com o PP: está demasiado manchado por escândalos de corrupção. O mais lógico é que se liderar o governo um partido "velho" o faça em minoria, porque os partidos novos não querem contaminar-se.
Os partidos emergentes apresentam-se como garante de regeneração democrática. Pensa que podem realmente reduzir os níveis de corrupção que há em Espanha?
Que têm vocação de regenerar, penso que sim. Que consigam fazê-lo, penso que não. Os problemas de corrupção são mais sistémicos e não se podem solucionar apenas com reformas legislativas. Tem a ver com a forma como funcionam as estruturas sociais em geral, com os níveis de informação política que há na sociedade, com os níveis de educação. E, nestas questões, Espanha está muito atrasada em relação ao norte da Europa. Os níveis de confiança social são muito baixos.
O Podemos cresceu muito rapidamente baseado num discurso muito crítico em relação à forma como está organizado o sistema económico. É um partido realmente de rutura?
O Podemos moderou bastante o discurso do ponto de vista económico. As primeiras propostas estrela de Pablo Iglesias: reestruturação da dívida e rendimento básico universal, foram entretanto abandonadas. Em termos de política económica, o que o Podemos oferece hoje já não é tão fraturante, mas antes keynesiano: defende aumentar a procura, subir os salários e reativar o consumo, esperando assim reativar a economia. É uma política não muito distinta do que defendiam os social-democratas há alguns anos atrás.
Conseguirá cimentar-se um partido com estas características?
O Podemos enfrenta também o problema de ter mudado muito o perfil dos seus votantes. No princípio os seus apoiantes eram toda a gente que estava irritada com a situação do país, mas depois foram ficando as pessoas mais afetadas pela crise: jovens com boa formação no desemprego, trabalhadores precários, desempregados de longa duração, vítimas de despejos, etc. Já não é toda a gente que está irritada com a situação do país, mas aqueles a quem a crise afetou pessoalmente. É muita gente, mas talvez não seja a maioria social que o Podemos desejava alcançar. É preciso ver que em Espanha há mais de 10 milhões de pessoas que têm ações em bolsa, que 80% da população é proprietária e essas pessoas são mais conservadoras por natureza.
Teve impacto nesse percurso o que ocorreu este ano na Grécia e a experiência do Syriza junto das instituições europeias?
No ano passado, Pablo Iglesias falava muito sobre a recuperação da soberania nacional, dizendo que Espanha não podia continuar a ser uma colónia da Alemanha. Era um discurso de enfrentamento em relação à União Europeia, muito crítico com o Euro. O certo é que depois da experiência de Alexis Tsipras, tudo isso desapareceu bastante do discurso do Podemos.
A arquitetura europeia e a moeda única são temas que têm estado muito apagados durante a campanha eleitoral.
Sim, isso é algo de que ninguém fala nesta campanha eleitoral. É como se a Europa não existisse. É uma situação absurda: que um país seja tão dependente da política exterior e que ninguém fale sobre isso na campanha eleitoral. Cria-se a ficção perante os cidadãos de que quando os partidos chegarem ao poder vão poder fazer o que quiserem. É uma falta de respeito perante a cidadania: não há debate sobre alguns dos principais problemas que a Espanha enfrenta neste momento.
No seu livro "A Impotência Democrática", aponta o dedo a essa incapacidade dos governos aplicarem as suas medidas quando têm que prestar contas a instituições externas como a Comissão Europeia ou o BCE. Mas esses "limites democráticos" não dependem também da vontade política de os enfrentar?
É verdade que são limitações fruto de acordos políticos. Mas o que acontece é que a crise económica fez com que o confronto entre países credores e devedores tenha aumentado. Então será mais difícil chegar a acordos para mudar as regras do jogo, porque seria necessário colocar de acordo países com interesses muito diferentes. O que se vê é que há um esforço muito grande da Alemanha para impôr o seu modelo a todo o conjunto da UE. Não vejo possibilidades de negociações para modificar a arquitetura institucional da união monetária.
Nem com uma união dos países do sul, os mais afetados pela crise da dívida, que poderiam fazer um bloco de pressão dentro da UE?
Falou-se na possibilidade de um bloco que incluísse três países grandes como França, Itália e Espanha, que colocasse um travão em algumas das iniciativas da Alemanha, mas isso na prática não sucedeu. O que vemos é como, através de um processo pouco democrático, se avança na generalização do modelo alemão e as consequências não podem ser boas porque esse modelo não pode funcionar em economias tão distintas dentro da Europa. Além disso, dada a falta de capacidade dos países para resolver os problemas derivados da crise, o Banco Central, que é uma instituição não democrática, conseguiu um poder de influência enorme e agora não quer desfazer-se dele.