Simón Escoffier, professor na Universidade Autónoma do Chile, fala sobre o sentimento de abandono e vulnerabilidade que sentem os chilenos, na antecâmara das polarizadas eleições presidenciais, entre dois candidatos dos extremos, à Direita e à Esquerda.
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Professor universitário, Simón Escoffier falou ao "Jornal de Notícias" sobre o Chile que se aproxima do momento de escolher um novo presidente. Um país que já foi líder económico na América do Sul, que sente agora os efeitos da corrupção e enfrente uma crise inflacionária.
Como descreve a atual situação política e social no Chile? Há uma crescente polarização?
O país enquanto um todo não está polarizado, a elite é que está polarizada. Superficialmente, há polarização, mas as pessoas não estão polarizadas. Vivem antes um sentimento de abandono e vulnerabilidade. Procuram alguma coisa que as ajude. As instituições não as ajuda, não confiam nas instituições e a extrema-direita e a extrema-esquerda estão a oferecer-lhes alguma coisa.
Trata-se de uma escolha entre extremos?
Do meu ponto de vista, o candidato da Esquerda não está extremado. Penso que o problema está nas propostas e medidas muito ambiciosas. Isso é que é extremo. As mudanças são tão grandes que as pessoas não confiam que seja possível, especialmente com o Congresso que temos atualmente, muito fragmentado.
Qual o sentimento que se vive no Chile?
O país vive um momento de grande instabilidade e incerteza. Parcialmente, devido à covid-19, como o resto do Mundo, mas também por causa das consequências económicas. Há a sensação de que os preços estão a subir por causa da inflação, que está a subir imenso... As pessoas sentem que vivem no limite.
A corrupção é um dos problemas do país...
Há dez, quinze anos, os chilenos jamais diriam que o país era corrupto. A generalidade da população tinha a sensação que talvez houvesse corrupção a um nível muito elevado, mas acreditava que a corrupção na generalidade das instituições não existia.
O que mudou?
Nos últimos anos, devido à lei da transparência e à melhoria dos sistemas de supervisão, as pessoas começaram a ver a corrupção que foi invisível até então. Diz-se que a corrupção afetou instituições muito importantes e a confiança das pessoas. Estamos a falar do Governo, dos militares, da polícia, os partidos políticos, especialmente da Direita, que nunca ninguém achou que podia ser corrupta.
Isso explica as perdas que os partidos políticos sofreram...
Os independentes são políticos muito bem-sucedidos porque ninguém confia nas instituições e ninguém quer saber de partidos políticos. Nas sondagens, os partidos políticos têm 2% de aprovação. É muito baixo. No congresso também, a taxa de aprovação varia de 2 a 4%.
E também é por isso que surge o radicalismo e um discurso aparentemente "fora do sistema"?
Com Trump e com o Bolsonaro foi igual. Bolsonaro foi deputado durante muitos anos, antes de ser eleito presidente, mas representa um "outsider", um antissistema. A retórica e os métodos populistas grassam por todo o Mundo e levaram também ao Brexit. O Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) foi muito bem-sucedido, também porque se bateu contra a tradicional ala direita.
Como explica a violência que varreu o Chile a partir de 2019?
Violência foi resultado do sentimento de abandono que as pessoas sentiram. Os chilenos sentiram-se muito vulneráveis e por isso tornaram-se violentos. A violência é como um ciclo: desgasta e descredibiliza as instituições ainda mais, porque as coloca numa posição insustentável - têm de controlar a violência, mas não podem responder com igual nível de violência. E a menos que haja um Estado muito forte, com muita polícia e muitas táticas para lidar com a violência, é quase impossível controlar este nível de violência. Vivi no Reino Unido e nunca vi nada sem sequer algo de aproximado daquilo que vivi aqui. Uma mobilização incrível por todo o país, impossível de ser controlada pela polícia, durante dias seguidos.
A violência é uma consequência do descrédito em que caíram as instituições?
A violência é parte da dinâmica, não a origem da instabilidade política e do descrédito político. Mas isto é no fundo uma cadeia. Por que é que esta instabilidade política é particularmente sentida neste momento no Chile. De onde vem? Vem de séries de circunstância.
Consegue explicar essas circunstâncias?
Tivemos uma série de leis, leis orgânicas protegidas pela Constituição, que precisam de ¾ da aprovação do parlamento para serem alteradas. Inicialmente, nos anos 90, foi criado um conselho de segurança que, potencialmente e em caso de instabilidade, podia ficar com mais poder do que o presidente e podia dar o poder de novo aos militares. A Concertação - coligação de centro-esquerda dos anos 90 - foi muito contra a possibilidade de os militares tomarem de novo o poder. Por isso, tiveram de moderar muitíssimo as mudanças que queriam fazer. Temos também um sistema eleitoral que favorece a ala direita. Houve duas grandes coligações e o sistema eleitoral fragmenta artificialmente todo o espetro político em dois grandes grupos: a Direita e a Esquerda.
Como justifica o nível de descontentamento dos chilenos?
A experiência das pessoas nos últimos 30 anos foi sobretudo ver bloqueado tudo o que queriam e precisavam. E isto é muito importante para percebermos como chegamos à violência de 2019. Toda a espécie de leis progressivas, por exemplo, tiveram de ser conquistadas com imenso esforço e trabalho pela sociedade civil. Estamos a falar de quinze, vinte anos de mobilizações, de esforço e de custos para as pessoas. Foram muitos custos para alcançar direitos humanos. É essa a experiência das pessoas, principalmente, na Esquerda.
Essa dinâmica enfraqueceu o sistema democrático?
O que tivemos, durante anos, no Chile foi uma ideia muito superficial de democracia. A democracia era apenas eleitoral e os dois partidos políticos tiveram ambos uma aproximação muito hierárquica à democracia, nos últimos 30 anos. As pessoas viram constantemente que as as suas necessidades e reivindicações nunca chegavam ao parlamento. Ao contrário da Europa, não há capacidade para transformar as reivindicações das pessoas em leis ou iniciativas legislativas. Tudo o que a sociedade civil podia fazer era absolutamente inútil. Democracia foi muito fraca nos últimos 30 anos.
E isso também levou a que a violência saísse às ruas?
A violência é parte desta equação, como resultado e também como modo de acelerar a erosão das instituições políticas, especialmente na direita. A violência colocou a Direita e o Governo, a que representava toda a ala direita, numa situação muito complicada. À Direita, as pessoas pensavam que o Governo não era suficientemente eficiente e que devia fazer muito mais para parar os protestos. À Esquerda, pensavam que o Governo estava a fazer demais e a reprimir demais os manifestantes. Era uma situação impossível para o Governo. Basicamente, a violência matou a imagem de Piñera, do Governo e da Direita.
Foi a partir daí que os partidos tradicionais começaram a perder terreno?
As instituições políticas foram muito desgastadas pela Esquerda até 2019. Depois de 2019, os partidos da Direita perderam muita credibilidade. E é por isso que Kast está tão forte neste momento. E também é por isso que Sichel teve tanta proeminência na ala direita. É um independente, representa um "outsider".
Muitos analistas comparam a atual situação do Chile com o Brasil de Jair Bolsonaro. Concorda?
É difícil comparar. Porque o sistema do Brasil é muito diferente do chileno. O Brasil é muito mais descentralizado o que teve muito impacto no resultado obtido por Bolsonaro. Estou a acabar de escrever um livro sobre os movimentos de Direita na América Latina e a investigação mostra como o sistema da sociedade civil suportou a eleição de Bolsonaro, como uma pirâmide. Como se se tratassem de células diferentes, as pessoas organizaram-se em pequenos grupos, socializaram com outros grupos e criaram ligações, por isso, cresceu muito rápido. Mas, essencialmente, isto acontece devido ao facto de ser descentralizado. As localidades desenvolvem o poder político, não precisam de ir ao centro. No Chile é sempre preciso ir ao centro para alcançar algum poder.
A comparação entre Jose Antonio Kast e Jair Bolsonaro é comum...
Kast precisou, nas últimas semana, de chegar aos partidos da Direita, para garantir apoio. Precisa de conquistar territórios específicos para a campanha e que deputados destes partidos o apoiem. Mas, em troca, estes partidos estão a pedir-lhe que modere o discurso e o programa. É diferente do que vimos com o Bolsonaro, que concorreu dizendo ser honesto e dizendo tudo o que pensava. E as pessoas gostaram. Kast não diz o que pensa.
Apesar disso, venceu a primeira volta das eleições...
Há pessoas na Direita que valorizam o discurso de Kast, outras pessoas apesar de não o validarem, acham que é a única opção que têm. Muitos eleitores também votaram Kast na primeira volta porque Sichel cometeu muitos erros durante a campanha. E quando Kast começou a ter popularidade, apoiaram-no porque era popular e muito bem sucedido a mostrar-se moderado em debates e assim. Apareceu muito tranquilo, simples e até pedagógico, apelando muitas vezes ao senso comum. Nunca teve aquela atitude de agressividade do Bolsonaro. Protege-se da ideia de que é um radical, numa atitude muito diferente da de Trump ou do Bolsonaro.
Como vê o atual momento?
Estou muito preocupado com a polarização. Porque acredito que a polarização da elite mascara a desconfiança da população nas instituições políticas. Pode ficar a parecer, por exemplo, no caso da vitória de Boric, que as pessoas apoiam grandes mudanças, que querem o plano ambicioso de Boric. E isso não é verdade. As pessoas apenas não confiam nos outros. É a única coisa que têm.
Na sua opinião, qual é a solução para revitalização económica e social do país?
A maior questão não é económica, acredito que maior questão é política e de direitos políticos. Qualquer Governo dependerá da paz para governar. Um elemento-chave para a revitalização do Chile é a mudança. As pessoas precisam de sentir que o país está a progredir no sentido da maior justiça em termos de políticas públicas. Lidar bem com a covid-19 e manter vacinas disponíveis para as pessoas é também muito importante. Acredito também que as mudanças têm de ser bem comunicadas e têm de ser lentas, porque é impossível fazer essas mudanças tão rápidas. E isso ajudará a revitalização económica do Chile.
Gabriel Boric está à frente nas sondagens. Percebe-se nas ruas porquê?
Boric tem muito apoio porque as pessoas têm medo de Kast. E mesmo as pessoas que nunca confiaram nos partidos políticos e nunca acreditaram nos partidos estão a mobilizar-se contra Kast e a apoiar Boric.