Carros de combate russos, tomados pelo exército ucraniano e expostos no centro de Kiev, atraem famílias.
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Tanques calcinados, dispostos ao centro da praça, peças de artilharia exibidas como troféus de guerra. Fragmentos de um uniforme russo, a revelar a ausência crua de um corpo que não terá resistido à violência do ataque. Crianças que trepam, que celebram, como pequenos soldados, uma vitória imaginada em campo de batalha. Pais de punho erguido, a alavancar o êxtase coletivo de quem acorda todos os dias com a ilusão de que a guerra, que há três meses se instalou no quotidiano, possa ser já só uma miragem.
Na Praça de São Miguel, que acolhe a catedral ortodoxa com o mesmo nome, tocam os sinos a rebate em manhã dominical, num contraste avassalador com a exposição bélica que toma as atenções de quem percorre a área ampla no centro de Kiev, a curta distância da icónica Praça de Maidan. A acentuar o contraste, um grupo de budistas alinha-se junto ao canhão de um tanque. Mãos dispostas em oração e um grande cartaz onde, em caracteres cirílicos, se expõe a mensagem: "Reza pela Ucrânia, que o céu nos guie e proteja".
"Não sabemos quando vai terminar a guerra, tudo o que podemos fazer é esperar e rezar. Estamos nas mãos de um homem que decidiu vir mudar as nossas vidas", atira Serguei, que, tal como os que o rodeiam, integra um centro budista na cidade ferida de Irpin. Grupo que tem calcorreado o país com o propósito de contrapor, à retórica da guerra, uma mensagem de paz. "Vim de Donetsk, para escapar à guerra. Agora estou aqui, o nosso centro é em Irpin, mas andamos de cidade em cidade", conta.
Pouco depois das 13 horas, começam a tocar as sirenes, numa toada contínua que atravessa a grande praça onde as três estátuas, como tanto património na Ucrânia, estão totalmente cobertas com sacos de areia. Sob a iminência de uma ameaça aérea, nenhum esgar, nenhum rosto tolhido, nenhuma intenção de desmobilizar. Cirandam as crianças entre carros de combate carbonizados, onde possivelmente a vida se esvaiu no tempo de um sopro.
Geração ferida
Duas adolescentes, cabelos e maquilhagem a remeter para o visual resgatado do anime japonês, observam os tanques, fotografam, congratulam-se com a presença a céu aberto de peças de armamento pesado que, para elas, traduz uma antecâmara da derrota do invasor. "É importante ver estes tanques aqui, para as pessoas perceberem que o nosso exército é forte e pode vencer esta ocupação", atira Vasilisa, para depois reforçar a convicção que tem permitido sacudir o desalento. "Vamos vencê-los, a nossa fé é muito grande".
Aos 17 anos, Vasilisa dá conta de uma ferida que ameaça atravessar uma geração. "Somos muito jovens para viver em estado de guerra. Isto vai deixar uma marca na nossa geração. É difícil explicar o que sentimos, alguns estão mal mentalmente, a tentar ultrapassar tudo isto". Mais difícil é perceber as convicções que lhe chegam do outro lado da barricada. "Tenho vários amigos russos. Tenho vindo a perceber que há muitos adolescentes russos que apoiam esta guerra. Justificam-na com os oito anos de conflito no Donbass. Choca-me que isso seja argumento para a agressão, que haja jovens a apoiar a guerra". A seu lado, Sophia, de 16 anos, partilha da indignação perante a apologia da guerra, que veio impor uma dolorosa cisão.