O Ministério Público da Segurança chinês anunciou a transferência de 31 mil suspeitos de fraude online de Mianmar para a China. Entre os detidos estavam 63 alegados cabecilhas de redes mafiosas, incluindo da família Ming, cujo patriarca se suicidou e foi autopsiado numa carrinha de caixa aberta.
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A dinastia Ming será provavelmente a mais conhecida da história da China, que dominou durante quase três séculos, entre 1368 e 1644. Tinha um exército permanente de cerca de um milhão de soldados, uma marinha poderosa, construiu a Cidade Proibida de Pequim e as partes mais conhecidas da Grande Muralha da China. Os três Ming detidos recentemente pela polícia chinesa numa cidade fronteiriça de Mianmar não deixaram nada de positivo ou grandioso: são suspeitos de liderarem um esquema de fraudes telefónicas online que enganou milhões de chineses.
Uma fotografia divulgada pelo Ministério Público da Segurança (MPS) da China mostra a captura de Ming Zhenzhen e Ming Guoping, exibidos algemados junto de nove polícias, em frente ao arco de fronteira com Mianmar. Na foto falta Ming Julan, também detido numa grande operação da polícia chinesa, que identificou 31 mil suspeitos de fraudes online e por telefone, que eram operadas por cidadãos chineses levados à força ou ao engano para trabalhar em “call centers” do crime, como o “Crouching Tiger”, gerido por Ming Zhenzhen, neta do patriarca da família Ming Xuechang.
Entre os suspeitos transferidos de Mianmar para território chinês estariam 63 cabecilhas, organizadores ou membros importantes de organizações criminosas e 1500 fugitivos, avança o portal de notícias em inglês China-Org.
“Ming Guoping, Ming Julan e Ming Zhenzhen, líderes de uma quadrilha de fraude online e por telefone na Zona Autoadministrada de Kokang, no norte de Mianmar, foram presos, enquanto o criminoso que os chefiava, Ming Xuechang, cometeu suicídio por medo de punição”, escreve a agência de notícias chinesa Xinhua. "Um grande número de centrais telefónicas para cometer golpes foi erradicado com sucesso, desferindo um duro golpe para as quadrilhas", acrescenta, citando um comunicado do MPS.
O grupo chefiado por Ming Xuechang era conhecido por cometer fraudes nas telecomunicações e na Internet contra cidadãos, gerando um grande fluxo de ganhos ilícitos. É suspeito de crimes violentos graves, incluindo homicídio, agressão e detenção ilegal, segundo o MPS.
O centro de operações dos Ming era a cidade de Lincang, junto à fronteira com a província chinesa de Yunnan. Nos últimos 14 anos, os Ming prosperaram naquele outrora pequeno e pobre povoado de Mianmar, uma terra sem lei dominada por chefes de quatro famílias: Bai Suocheng, Wei Chaoren e Liu Zhengxiang e Liu Guoxi, que morreu em 2020.
Apesar de poderosos, os Ming, cujo "padrinho" era Ming Xuechang, não faziam parte do quarteto de famílias mafiosas líderes de Lincang, que desde o virar do século se transformou num salão de jogos, centro de esquemas fraudulentos por telefone e reino do crime, carreado por milhares de chineses iludidos por uma oferta de emprego aparentemente lícita e vítimas de tráfico de pessoas para a prostituição ou para trabalhar em centros de fraude como o “Crouching Tiger”, da família Ming.
Mais de 100 mil estrangeiros a trabalhar em "call centers" do crime
Mais de 100 mil estrangeiros, a maioria da China, trabalhavam em centros de esquemas fraudulentos, onde viviam prisioneiros e forçados a longas jornadas laborais em sofisticadas operações de fraude por telefone e online com vítimas em todo o mundo, segundo a BBC. O "Crouching Tiger Villa", ou a "Casa do Tigre Agachado", em que o "Villa" dá um toque europeu e mediterrânico, era um desse locais, que beneficiava da complacência das autoridades locais, cujas fardas terão sido oferecidas pelos Ming, para quem a polícia funcionava como uma espécie de milícia privada, que contribuiu também para perpetuar o poder das quatro famílias criminosas de Lincang.
Segundo a agência Xinhua, estas detenções são o epílogo de um movimento das autoridades chinesas iniciado em setembro para pressionar os grupos de crime organizado que medravam com os esquemas fraudulentos em Lincang. A pressão aumentou ainda no verão, mas não quebrou os Ming, cujos casinos renderão milhares de milhões de anos por ano.
No entanto, na madrugada de 20 de outubro, a dinastia criminosa dos Ming começou a esboroar-se, quando um grupo de trabalhadores que estava a ser transferido do “Crouching Tiger”, provavelmente antecipando o aperto do cerco da polícia chinesa. Alguns trabalhadores, entre 50 a 100, consoante os relatos, tentaram fugir e muitos foram abatidos pelos guardas do complexo. Entre as vítimas estarão polícias chineses à paisana, segundo informações da BBC.
A ação motivou uma queixa do Governo local às autoridades chinesas, que aceleraram a operação policial e a emissão de mandados de captura para os quarto Ming: Guoping, Julan e Zhenzhen foram detidos enquanto o líder cometeu suicídio. Segundo a BBC, Xuechang foi autopsiado na traseira de uma carrinha. Um fim pouco digno para um líder do crime organizado, que fez parte da círculo íntimo das famílias criminosas que mandaram em Lincang durante mais de 20 anos.
A vida e morte de Ming Xuechang ilustram a história do crime em Lincang, cujas origens remontam à época anterior à queda do Muro de Berlim. O defunto líder dos Ming foi capataz de Bai Suocheng, o vice-comandante do primeiro senhor do crime naquela região pobre de Mianmar, Peng Jiasheng, que aproveitou o caos do período pós independência de Myanmar, em 1948, para criar um narco estado na região de Shan, uma terra pobre, sem indústrias ou comércio que se visse, que vivia da plantação de ópio.
O estado de Shan chegou a ser o maior produtor de ópio no mundo. Uma atividade que rendeu milhões de euros e transformou aquela região numa zona dominada pelo crime e pela droga, particularmente após a violenta repressão da revolta popular de 1988, em Mianmar.
O jogo como substituto dos dinheiros da droga
Pressionado pelos militares, Peng começou a desenvolver a indústria do jogo em Lincang como uma forma de reduzir a dependência financeira do narcotráfico. Durou uns bons 20 anos, o reinado do senhor do crime que tinha desertado do Partido Comunista Birmanês, em 1989, para se tornar líder de um micro estado dentro do estado de Shang, com o beneplácito dos líderes, quase sempre autocráticos, no poder central em Mianmar.
Em 2009, o poder central passou a fatura, ao exigir que as forças paramilitares de Peng fizessem serviços de guarda fronteiriça. Peng recusou e assinou a própria sentença... Min Aung Hlaing, o comandante militar que liderou o golpe de 2021 e ainda está no poder, convenceu Bai Suocheng, o braço direito de Peng a virar-se contra o chefe.
Peng foi forçado a sair para a China, mas o negócio dos casinos não só não definhou como floresceu. Conta a BBC, que os jogadores mais inveterados continuaram a fazer apostas quando decorriam tiroteios no exterior, deixando marcas de bala ainda visíveis nas paredes dos edifícios.
Com a proteção dos militares, as quatro famílias do crime em Lincang prosperaram, com negócios nos casinos, mineração, energia e infraestruturas. Estabeleceram laços com o crime organizado em Macau e no sul da China.
O exército de Peng, o MNDAA, manteve-se leal ao chefe exilado na China e tentou recuperar o poder em 2015. Com a morte do mentor, no ano passado, aos 91 anos, os filhos assumiram as rédeas do grupo e controlam agora as estradas da zona fronteiriça com a China, com a anuência de Pequim, a quem terão prometido acabar com o "paraíso das fraudes" como chamou a ONU àquela cidade. Em troco, ficam com o lucrativo negócio dos casinos, ilegais na China, mas muito procurados por cidadãos chineses do outro lado da fronteira, em Mianmar ou em Macau.