França: estados de emergência sucessivos podem criar o vício de violar liberdades
A covid-19 trouxe a este país à beira-mar plantado uma realidade desconhecida de muitos - viver sob estado de emergência, já que desde os anos 1970 este instrumento legal nunca havia sido usado em Portugal. Mas para os franceses esta é uma realidade que parece não ter fim. Nos últimos 66 anos, a França passou por sete estados de emergência, tendo vivido cerca de metade dos últimos seis anos com as liberdades individuais limitadas por aquele expediente.
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O debate em França tem sido intenso e, numa altura em que o estado da saúde pública é frágil e demasiado instável devido ao novo coronavírus, que já ceifou mais de quatro milhões de vidas a nível mundial, questiona-se, severamente, os efeitos nefastos dos sucessivos estados de emergência na democracia do país.
Ao JN, Sandra Fernandes, professora da Universidade do Minho, doutorada em Ciência Política e especialista em Relações Internacionais, pôs em perspetiva os prós e os contras da situação atual em França, admitindo que "é preciso pensar noutras medidas que não sejam tão limitadoras das liberdades", mas confessando que não tem uma "visão tão dramática sobre as consequências para a democracia".
Mas façamos uma retrospetiva: em 2015, o país foi devastado por uma série de atentados terroristas que mataram mais de 130 pessoas. A ameaça era iminente e a segurança da nação e dos cidadãos estava em causa, uma das exigências para se poder aplicar o estado de emergência, neste caso, securitária. A norma manteve-se em vigor por 717 dias.
Já em 2020, a pandemia obrigou o presidente francês, Emmanuel Macron, a voltar a recorrer ao instrumento, desta vez, por razões sanitárias. Durou dez meses, com interrupções. O porquê do recurso ao estado de emergência parece, assim, bastante claro.
"Como sair deles?"
O problema é que, quando utilizado por um tempo excessivo, pode prejudicar as liberdades individuais e o respeito pelo Estado de Direito. "Desde a crise sanitária do ano passado que o debate sobre a pertinência e a legalidade do estado de emergência tem sido muito intenso. Devido aos sucessivos prolongamentos, acaba por entrar como estado de direito comum", sublinhou a académica, que considera que uma das medidas mais questionáveis no estado de emergência é a possibilidade de o Executivo impedir qualquer tipo de manifestação. A norma "permite o controlo de manifestações, sendo possível proibir as pessoas de protestarem, o que é uma grande tradição social em França".
O próprio Conselho de Estado, que tem a função de aconselhar o Governo e que neste ano se dedicou a estudar os estados de emergência, questionou-se sobre "como sair deles". Depois de um ciclo de quatro conferências sobre os estados de emergência, o órgão concluiu que podem ser um inimigo invisível para a democracia. "O levantamento da medida é uma decisão delicada, eminentemente política", escreve o Conselho de Estado. Mas será que "o recurso assíduo aos estados de emergência cria um vício em violações de liberdades e uma banalização de situações excecionais?"
Para Sandra Fernandes, os danos provocados na democracia "não são imediatamente visíveis, por serem mudanças quase insidiosas". Será preciso mais tempo para se ver o resultado de viver três anos de seis sob estado de emergência. Todavia, sublinhou a especialista, um estudo revelou, recentemente, que o estado de emergência sanitária afetou pelo menos 48 liberdades.
"Claro que nenhum estado de emergência foi decretado sem sentido", insistiu, lembrando que esta é uma medida de exceção. Mas é, claramente, necessário encontrar soluções "que sejam mais respeitadoras do equilíbrio de segurança, liberdades e poderes judiciário, legislativo e executivo.
Estados de emergência: do Bataclan à covid-19
Depois de uma das noites mais negras vividas em França, em que foram levados a cabo uma série de atentados terroristas, com fuzilamentos em massa, atentados suicidas e explosões, incluindo o tiroteio na discoteca Bataclan, em Paris, capital francesa, onde morreram 90 pessoas, o presidente François Hollande decretou o primeiro estado de emergência, que se viria a prolongar até novembro de 2017.
Assolada, como tantos outros países na Europa, pela pandemia de covid-19, França voltou a entrar em estado de emergência, desta vez, sanitário. O primeiro-ministro passou a poder, por decreto, restringir ou proibir a circulação de pessoas, limitar ou proibir reuniões em via pública, bem como ajuntamentos de qualquer tipo, entre outras possibilidades. Este estado de emergência foi levantado a 10 julho de 2020.
França registou um aumento exponencial de casos de covid-19 e, por isso, o presidente, Emmanuel Macron, decidiu voltar a colocar o país em estado de emergência, que vigorou até 1 de junho.
Pormenores sobre o estado de emergência
Criado para responder a ataques na Argélia
O estado de emergência é uma medida excecional criada a 3 de abril de 1955. Foi elaborada como resposta aos ataques perpetrados na Argélia pela Frente de Libertação Nacional e aos confrontos entre ativistas da independência e o Exército francês nos departamentos gauleses da Argélia.
Atualização em 2015
Em consequência dos atentados de 2015, o quadro jurídico do estado de emergência foi alterado diversas vezes para facilitar a implantação de medidas na luta contra o terrorismo. Passou a permitir fornecer informação ao Parlamento, deu mais poder às autoridades administrativas, que passam a estar autorizadas, por exemplo, a dissolver, em Conselho de Ministros, associações ou grupos que atentem contra a ordem pública.
100 portarias
Em pouco mais de um ano, surgiram em França 100 novas portarias, seis leis e incontáveis decretos relacionados com a crise sanitária provocada pela covid-19 no país.