Mais de 84 mil trabalhadores foram dispensados de empresas tecnológicas só em janeiro, numa onda de despedimentos em massa que já vem de trás. As empresas explicam os cortes com a mudança do contexto económico e recrutamento excessivo durante a pandemia e não dizem se vão despedir em Portugal, onde o mercado continua atrativo.
Corpo do artigo
O ano começou há pouco mais de um mês e a vaga de despedimentos em massa levada a cabo pelas gigantes tecnológicas já deixou dezenas de milhares de pessoas no desemprego, num efeito dominó que começou no final de 2022. Só em janeiro, o setor dispensou mais de 84 mil trabalhadores, de acordo com a plataforma online Layoffs.fyi, que regista despedimentos coletivos em empresas tecnológicas à escala global.
Os pesos pesados de Silicon Valley, polo tecnológico mais importante do mundo, lideram a lista das chamadas "reestruturações" do último mês: a Google pôs em marcha a demissão de 12 mil funcionários (correspondente a 6,4% da força de trabalho), a Microsoft dez mil (5%) e a Amazon avançou com oito mil despedimentos, só três meses depois de ter orientado uma primeira ronda de cortes que deixou dez mil trabalhadores da gigante de comércio eletrónico no desemprego. Não fica por aí: a IBM demitiu 3900 funcionários, a PayPal dois mil e a Glovo dispensou 6,5% da mão de obra.
Desde a pandemia de covid-19, Google, Meta, Microsoft e Amazon foram as empresas tecnológicas que mais trabalhadores despediram, em termos absolutos.
A onda de despedimentos que se agigantou em janeiro começou a formar-se em finais do ano passado. Em novembro, Elon Musk foi o primeiro ao cortar o Twitter pela metade, tendo despedido desde então mais de dois terços dos funcionários para "melhorar a saúde da empresa". No mesmo mês, Mark Zuckerberg assumia a responsabilidade por uma das "mudanças mais difíceis da história do Meta", dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, comandando a primeira redução de pessoal em grande escala nos 18 anos da empresa. A expectativa assumida de que o aumento na atividade online que se registou na pandemia continuasse saiu furada e a Meta acabou por dispensar 13% do total de funcionários (11 mil). "Infelizmente, o cenário não se desenvolveu da maneira que eu esperava", lamentou Zuckerberg.
"Queda forte" na bolsa no pós-pandemia
Crise, diminuição do comércio online, perda de anunciantes, aumento da concorrência, diminuição de receita e necessidade de reduzir custos para otimizar a gestão são, de forma geral, os argumentos para os anúncios de cortes, numa altura de desaceleração do crescimento económico e incerteza de futuro. Haverá dois fatores que explicam esta mudança, aponta Luís Cerejeira, professor em Economia de Trabalho da Universidade do Minho. Além das "expectativas exageradas das tecnológicas relativamente àquilo que ia ser o pós-pandemia", há uma queda do valor de mercado, que provocou "menor disponibilidade de capital" e "retirou fundos de capacidade de investimento destas empresas", levando-as a emagrecer à força para melhorar resultados.
Quer o Banco Central Europeu, quer a Reserva Federal Americana estão a reduzir a injeção de capital na economia. A redução da liquidez, a par com a subida do custo do dinheiro, retirou capital que estava a ser aplicado na bolsa de valores.
"Houve uma queda forte em termos bolsistas nas grandes empresas norte-americanas. Tivemos um período longo de taxas de juro muito baixas, em que era muito mais atrativo para os investidores, em vez de colocarem o dinheiro em obrigações ou depósitos a prazo, arriscarem em ações, nomeadamente de empresas com potencial de crescimento, como as tecnológicas. Com a subida das taxas de juro, tornou-se menos atrativo", explica o docente, doutorado em Economia pelo Instituto Universitário Europeu.
Luís Cerejeira resgata a crise da bolha tecnológica do início da década de 2000, quando um conjunto de ações de empresas líderes de mercado caiu a pique, para fazer o paralelo com o cenário atual, embora admita que ainda seja cedo para dizer categoricamente se estamos num fenómeno semelhante à da chamada crise das dot.com. Enquanto, durante a pandemia, "houve uma injeção maciça de capital por parte dos bancos centrais na economia e no crédito às entidades bancárias", agora há uma "redução de liquidez", que, a par com a subida do custo do dinheiro, "retirou capital que estava a ser aplicado na bolsa de valores", nomeadamente no setor tecnológico.
Embandeirou-se em arco demasiado rápido. Houve um investimento de forma desadequada
Ricardo J. Machado, professor catedrático de Engenharia e Tecnologias dos Sistemas de Informação da Universidade do Minho, lembra o crescimento para justificar a queda. Além das "necessidades trazidas pela pandemia", geradas por um aumento da atividade online e pelo desenvolvimento das soluções das Tecnologias de Informação (IT, na sigla em inglês), havia já um "fenómeno de longo curso desde há cinco/seis anos relacionado com o boom da Inteligência Artificial e a transformação digital", responsável por um grande aumento das contratações.
"Houve a colocação, num curto prazo, de investimento para as empresas. Embandeirou-se em arco demasiado rápido. Houve um investimento de forma desadequada", considera o docente, concluindo que, perante uma conjuntura socioeconómica muito diferente e à queda da transformação digital, caiu também a necessidade de construir e manter infraestruturas de cloud (de que a Google, a Microsoft e a Amazon são os três grandes fornecedores). A disponibilidade de capital encolheu e vieram as rescisões. Parte delas, admite o docente, não dirão respeito a "verdadeiros informáticos e tecnólogos", uma vez que, com a procura maior que a oferta, as empresas abriram portas a outros profissionais sem formação de base em IT, podendo ser esses os primeiros a sair.
Quem vai escapando a esta onda de despedimentos em massa é a também norte-americana Apple, que, além de ter sido mais contida nas contratações durante o período de ouro, tem um modelo de negócio distinto, na medida em que não oferece só um serviço de software, comportando também uma forte componente de equipamentos.
Mão de obra mais barata faz de Portugal mercado "atrativo"
Questionadas pelo JN sobre se os despedimentos já chegaram ou vão chegar às delegações portuguesas, as empresas não responderam, remetendo explicações para as posições transmitidas pelas sedes nos Estados Unidos. De qualquer forma, não é previsível que a perda de liquidez das gigantes prejudique o mercado português, até pelo contrário, tendo em conta que sai mais barato pagar um salário de um engenheiro em Portugal do que na Califórnia ou na Alemanha, para executar as mesmos funções.
Nós temos uma estrutura de custos baixa relativamente ao que essas empresas têm que suportar nos seus países de origem
"Mesmo que haja uma diminuição da procura de profissionais ou tentativa de reduzir custos nos Estados Unidos ou até no centro da Europa, isso pode até passar por incrementar as operações que são feitas em Portugal. Pode ter um efeito inverso, porque nós temos uma estrutura de custos baixa relativamente à que essas empresas têm que suportar nos seus países de origem", explica Luís Cerejeira, sublinhando que "Portugal continua a ter a vantagem de os profissionais serem mais baratos".
"O que observámos nos últimos anos foi um aumento da prestação de serviços de pessoas que trabalham a partir de Portugal e vendem o seu trabalho para empresas sediadas fora do país. Há aqui uma margem em que podemos continuar a ser competitivos", aponta.
Ricardo J. Machado concorda que Portugal tem um mercado "protegido" e "interessante" com "quadros altamente qualificados" e baratos comparativamente com os dos Estados Unidos e centro da Europa. "Não é evidente que as multinacionais sediadas em Portugal despeçam cá. O nosso mercado mantém-nos no setor", diz ao JN.