
Miguel Gonçalves Coordenador Nacional da Sociedade Planetária
Arquivo/Global Imagens
Coordenador nacional da Sociedade Planetária cofundada pelo astrónomo Carl Sagan, Miguel Gonçalves tem gasto estes dias pascais a navegar pelos sites dedicados à ciência aeroespacial. A Tiangong-1 é todo um argumento de cinema. E atira para outras questões. Como a do lixo que a ânsia de conquista do Espaço tem deixado em órbita.
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O que se passou com a Tiangong-1 para ninguém prever a hora e o sítio do impacto com a Terra?
A 21 de março de 2016, uma declaração oficial chinesa veio confirmar o que se suspeitava e era comentado em vários fóruns há algum tempo: tinham deixado de receber os dados de telemetria da Tiangong-1 - não seria possível estabelecer a comunicação que permitiria indicar com precisão a altitude e velocidade da estação espacial. Os cientistas chineses (e de todo o Mundo, incluindo astrónomos amadores) prepararam-se para um cenário de reentrada descontrolada.
E é possível calcular assertivamente as reentradas programadas?
A comunicação com a nave e a capacidade de esta ativar os seus propulsores para reentrar permitem programar a reentrada numa área determinada, de forma monitorizada. Mas mesmo nesses casos, a dinâmica das várias camadas da atmosfera, condições meteorológicas e a própria atividade solar introduzem variáveis que podem arruinar qualquer programação.
Neste caso, não há qualquer parâmetro...
Perante uma estação sem comunicação com a Terra e, supostamente, sem capacidade de propulsão, a órbita, a altitude e a velocidade são calculadas com base em observações feitas a partir da Terra, sem grande exatidão, e modelos teóricos. Tudo isto acrescenta incerteza, pois uma imprecisão de segundos na reentrada pode implicar uma imprecisão de centenas de quilómetros no cálculo da queda de eventuais detritos. Para já, as estimativas parecem apontar para uma reentrada nas primeiras horas da manhã do dia 1 de abril (aproximadamente às 7 horas de Portugal), mas com uma margem de erro de 20 horas.
Com riscos de impacto reduzidos, como noutros casos de famosas reentradas na atmosfera.
Temos exemplos de reentradas programadas em que o mediatismo foi inversamente proporcional à recuperação de detritos ou danos em populações, como a estação espacial soviética Mir e o observatório espacial da NASA Compton Gamma Ray, que caíram em oceanos. Em 2011, o satélite Upper Atmosphere Research da NASA foi manchete mundial devido a uma reentrada descontrolada. Estima-se que, das suas 6,5 toneladas, 532 kg sobreviveram à erosão da atmosfera e terminaram no Pacífico. Muito antes, em 1979, a estação espacial americana Skylab foi em grande parte consumida pela atmosfera sobre o Índico, mas alguns destroços chegaram a cair em solo australiano, o que levou a cidade de Esperance a cobrar 400 dólares à NASA pelos incómodos na limitação da área de queda de detritos... A NASA nunca respondeu, mas um DJ da Califórnia levou o assunto a peito e reuniu donativos para pagar a compensação! O complexo orbital soviético Salyut-Cosmos 1686 também regressou à Terra em fevereiro de 1991, com alguns detritos a tocar solo argentino, sem qualquer prejuízo humano.
E depois há o caso de Lottie Williams...
Supostamente, a única pessoa a ser atingida por um objeto espacial em queda. A probabilidade de sermos atingidos individualmente é sempre absurdamente pequena - estima-se que, no caso do Tiangong-1, seja de 1/1 000 000 000 000, ou seja, um em um bilião segundo a notação europeia! Já agora, uma pequena curiosidade: nos últimos 40 anos, cerca de 5400 m3 de material espacial terão sobrevivido à reentrada atmosférica sem qualquer prejuízo mortal para a Humanidade...
Qual foi a importância desta experiência chinesa para a corrida ao espaço?
Há algumas décadas que a China tem demonstrado uma notável vitalidade do seu programa espacial, realizado de maneira quase exclusivamente doméstica. O caso da Tiangong-1 é exemplo disso: a Estação Espacial Internacional é um esforço das maiores potências espaciais internacionais (EUA, Rússia e Europa), mas a Realpolitik tirou a China do projeto. A resposta dos chineses foi a construção da sua própria estação espacial. Além disso, a China foi a primeira nação a chegar à Lua com um lander e um rover depois das missões americanas e soviéticas ainda do tempo da Guerra Fria e tem em marcha missões de exploração do lado oculto da Lua, missões tripuladas ao nosso satélite natural, missões a Marte e outras estações espaciais. Há uma estratégia e a tecnologia chinesa tem claramente saído vencedora em toda esta aventura. Os planos espaciais da China são consistentes e têm um assinalável know-how acumulado, que pode beneficiar mais ainda de parcerias, anunciadas, com a agência espacial russa.
E se a queda da Tiangong-1 correr mal?
Pode ser interessante analisar a reação da liderança chinesa. No caso americano da Apollo 1, em que três astronautas morreram num incêndio numa cápsula espacial de treino em Terra, a NASA foi fortemente pressionada para suspender o programa espacial tripulado e só a forte convicção da Casa Branca e da administração da agência espacial permitiu prosseguir.
Que lição se pode tirar da sorte da Tiangong-1?
Perceber, nestes tempos tão vorazes de informação, que há eventos espaciais que escapam por inteiro à previsibilidade da Ciência. Que a termodinâmica atmosférica desafia qualquer modelo computorizado que tentar perceber o total caos orbital da reentrada de um corpo que, no caso da Tiangong-1, tem o tamanho de um autocarro e atinge velocidades de centenas de quilómetros por segundo. E serve também para relembrar a temática urgente do lixo espacial. A pegada ambiental da Humanidade em órbitas próximas da Terra é crescentemente inquietante. Em mais de 60 anos de era espacial, foram colocados em órbita mais de 7500 satélites: cerca de 4300 continuam no Espaço, mas só 1200 estão operacionais. São 7500 toneladas em órbita! Quanto aos detritos em órbita, estima-se que mais de 29 mil objetos terão mais de 10 centímetros e 166 milhões terão entre um milímetro mm e um centímetro. Ora, um simples parafuso a alta velocidade em rota de colisão com uma janela ou um painel solar da Estação Espacial Internacional pode significar uma catástrofe...
