Um cemitério público onde só se chega de barco. Um território imenso, carregado de história e de gente que não mereceu um adeus. Há mais de um século que Hart é a última morada dos indigentes, dos anónimos, dos não reclamados. E agora, também das vítimas da Covid-19.
Corpo do artigo
Uma "ilha da morte" onde não há despedidas. Hart é desde 1868 um cemitério que não conhece afetos. Ao longo de mais de 150 anos, o terreno com cerca de 40 hectares junto à costa do Bronx, em Nova Iorque, tem sepultado milhares de corpos. Funcionou também como um campo de prisioneiros durante a Guerra Civil, um hospital psiquiátrico, um centro de tratamento de álcool e drogas. Passou pela Gripe Espanhola e pela epidemia de VIH e serviu de local para quarentena de vítimas de febre amarela e tuberculose.
Durante décadas, o trabalho duro era feito pelos reclusos de uma das prisões da ilha de Rikers, mas a pandemia de Covid-19 mudou as regras. Foi contratada uma equipa de dez trabalhadores para tratar dos enterros em Hart.
Covid-19 voltou a abrir a ferida sobre a Ilha de Hart
Nova Iorque está no olho do furacão da Covid-19 e é de longe o Estado dos EUA mais afetado pelo novo coronavírus, tendo já ultrapassado a barreira dos 10 mil óbitos. Por isso, o maior cemitério público do país voltou a ser necessário. Desde a semana passada que os mortos não reclamados no espaço de duas semanas estão a ser levados para a ilha de Hart. Antes da pandemia, os corpos ficavam meses nas morgues à espera que um familiar surgisse.
As imagens das valas comuns são impressionantes. No terreno lamacento, abrem-se trincheiras para onde vão os caixões de madeira despidos de flores. Não há luto. Não há despedida.
12057074
Cerca de 25 pessoas são levadas para Hart todos os dias, tantas quantas eram ali enterradas todas as semanas antes da Covid-19, de acordo com o Departamento de Correção de Nova Iorque, que administra os enterros na ilha.
Utilizar o cemitério público da cidade em caso de pandemia já tinha sido equacionado há mais de uma década num plano de contingência redigido pelo médico legista da cidade da altura, explicou Mark D. Levine, vereador da Saúde.
Mas o número de mortes registadas na cidade de Nova Iorque pode obrigar a que não sejam apenas os mortos não reclamados a ir para a ilha de Hart. De acordo com o "The New York Times", as agências funerárias estão a ficar sem espaço para guardar os corpos e temem ter que dar más notícias às famílias. Ser enterrado em Hart é duro para os nova-iorquinos.
"O número devastador de mortes a que estamos a assistir significa que, infelizmente, estamos a perder muitas pessoas sem família ou amigos para enterrá-las. Essas pessoas serão enterradas na Ilha de Hart, com todo respeito e dignidade que Nova Iorque pode oferecer", escreveu o autarca de Nova Iorque, Bill de Blassio, na semana passada, no Twitter, onde lamentou as fotografias "devastadoras" que estão a correr o mundo. "Lembrem-se, são seres humanos. São vizinhos que perdemos".
1248648368533966849
As publicações mereceram resposta de Melinda Hunt, fundadora de uma associação sem fins lucrativos ligada à história da ilha. Também pelo Twitter, Hunt sublinhou que "os enterros na ilha de Hart não são desrespeitosos agora que o trabalho dos presos terminou". E, em declarações ao "The New York Times", defendeu que os enterros em Hart podem ser a alternativa mais segura e organizada durante a pandemia de Covid-19: "Este é um sistema de enterro experimentado e testado, usado pela cidade durante a epidemia de gripe de 1918." Hunt explicou ainda que há uma grande capacidade de recuperar os corpos posteriormente, para enterros particulares ou cremações.
Honrar a memória dos anónimos com cemitério interativo
Identificar os mortos, dar-lhes um nome e um rosto. Honrá-los. O "The Hart Island Project" foi criado em 2011 para apoiar as famílias dos enterrados e criou uma base de dados sobre os milhares de desconhecidos da ilha. A ideia de Melinda Hunt foi enaltecer a história dos anónimos e torná-los menos anónimos. Por isso, o "Travelling Cloud Museum" funciona como um cemitério online, interativo, onde é permitido acrescentar informações sobre mortos ou procurar alguém que tenha sido ali sepultado.
Em 2018, a instituição de caridade mapeou toda a ilha com a ajuda de um drone e de "geotiffs" (metadados de localização) de mais de 68 mil enterrados. Atualmente, é conhecida a identidade de quase todos os falecidos que vão para Hart e são permitidas visitas.
Em condições normais, Nova Iorque enterra cerca de mil corpos por ano, incluindo pessoas em situação de sem-abrigo, bebés mortos à nascença e pessoas cujas famílias não têm dinheiro para custear o funeral. Estima-se que haja um milhão de corpos sepultados na ilha de Hart.