A realidade para lá do sonho da Eurovisão: um ex-soldado israelita e uma dirigente dos Médicos Sem Fronteiras em Gaza falam ao JN.
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Murad reparava pratos de televisão por satélite. Magro salário, menos de cinco euros por dia, mas dava para eles comerem, ele e a mãe com quem vive numa casa-quarto. Hoje, a mãe é mesmo o que lhe resta. No dia 14 de maio de 2018, Murad foi atingido por fogo israelita durante o maior dos protestos junto à cerca que isola o território ocupado de Gaza de território israelita. No dia em que os Estados Unidos transferiam, com grande pompa, a sua representação diplomática para Jerusalém, reconhecendo a Cidade Santa como capital de Israel. No dia em que, num instante, morreram 60 palestinianos.
"Esta ferida destruiu-me". Fala da carnal, viva, emoldurada por ferros que lhe seguram ossos frágeis. Falará da outra: a vida toda - tem 26 anos - sob ocupação israelita, a 45 minutos de Telavive, essa capital moderna que por estes dias foi de sonho feérico em praias douradas para aprendizes de artistas, num festival de Eurovisão cujo mote foi "Atreve-te a sonhar".
Num cartaz à beira da estrada que entra em Telavive, a organização Breaking the Silence (BtS - "Rompendo o silêncio") completou a frase: "Atreve-te a sonhar... com a liberdade", escrita sobre uma montagem de fotos. De um lado, o dito ouro da areia de uma das melhores praias do Mediterrâneo. Do outro, o muro que Israel vem construindo, quilómetro a quilómetro, para isolar os territórios palestinianos. Por razões de segurança nacional, como quando Israel reage a provocações palestinianas. Ou a manifestações.
"Não sou só eu. É uma história muito maior do que eu"
"Sabemos que o objetivo de operações e ataques repetidos contra manifestantes não é segurança nacional, mas antes a manutenção do nosso controlo sobre milhões de palestinianos", dizia, em junho do ano passado, Dean Issacharoff, porta-voz da BtS.
Foi oficial de Infantaria do exército israelita. Quando a tensão atingiu o seu pico, em 2014, entrou com o batalhão Gaza dentro. Antes, servira em Hebron e na ruralidade a sul, dentro da Cisjordânia. Entre 2011 e 2015, andou por ali. Ali, os territórios ocupados. "Na altura achava que estava tudo OK".
Até que voltou para a vida normal e o irmão mais novo acabou na unidade de infantaria por onde passara e estava escalado para Hebron. "Realizei que essa é a nossa rotina há 50 anos. Não sou só eu. É uma história muito maior do que eu".
Volvido um ano, Dean explica-nos o famoso cartaz. Israel e o mundo que ali se juntou para a Eurovisão precisam de saber que a realidade é que há um estado que ocupa outro. A BtS é feita de veteranos israelitas que realizaram, como Dean, o que fizeram nos territórios ocupados. Recolhem testemunhos de outros como eles - "Já temos mais de 1200" - para dar ao Mundo. E, numa semana de Eurovisão, foram centenas as pessoas que procuraram a BtS para ir com quem conhece o terreno melhor do que ninguém ver Hebron, a única cidade palestiniana que tem um colonato em pleno coração histórico.
"Telavive está completamente desconectada da realidade que fica a hora e meia". Dean leva quem quiser para ver a diferença. E os israelitas são o maior contingente dos curiosos que procuram a ONG, seguidos de judeus da diáspora. Só não os leva a Gaza porque Gaza é um inferno fechado, bloqueado de ambos os lados, dividido nas entranhas. O inferno de Murad.
"A história deles revela o quão pobres são muitas pessoas de Gaza"
"Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) já trataram mais de 4000 dos mais de 7000 atingidos e feridos pelo exército israelita nos protestos junto à cerca desde 30 de março de 2018. "E ainda estamos a cuidar de muitos deles". Murad é apenas um e é o caso que mais toca a alma de Carla Melki, a francesa que coordena a missão daquela ONG internacional em Gaza. Porque Murad é o retrato da vida para lá do muro, para quem olha desde Israel.
"Apesar de pedirem dinheiro emprestado para sobreviver, Murad e a mãe não têm o suficiente para comprar coisas como gás e comida. A história deles revela o quão pobres são muitas pessoas de Gaza e o quão devastadoras podem ser as consequências destes ferimentos para as suas vidas", diz-nos, pedindo mais esforço da comunidade internacional.
"Para muitos o futuro é incerto: com Gaza sob bloqueio, há uma falta de tratamentos especializados e capacidade para as complexas cirurgias de que estas pessoas precisam e é difícil para a maioria da população sair de Gaza para ser tratada noutro lugar", conta Carla, ressalvando que mesmo a capacidade triplicada dos MSF desde março do ano passado não chega. Ponto. Porque o conflito não parou. Não pára.
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Há pernas tão destruídas que já não têm osso que regenere o suficiente para devolver uma vida digna àquelas almas. Fraturas expostas. E escasseiam no sistema de saúde local, tão vítima do bloqueio quanto a população - tratamentos e medicamentos e o acompanhamento adequado, quando Telavive é ali, 45 minutos a norte. Vivem presas num "limbo de dor" crónica ampliada pela impossibilidade de trabalhar para sair da miséria. "Agora não consigo. E ninguém se chegou para ajudar". Murad chora quando fala aos MSF. Murad alimenta-se de pão.
"Não seria ativista se tivesse lá estado. Vi coisas tão erradas"
"Eu odiava visar com balas de borracha crianças de mochilas às costas, vindas da escola, que atiravam pedras aos checkpoints. Mas ao cabo de algumas semanas já celebrava". E o preço a pagar, diz Dean, é descobrir a consciência desses atos. Descobrir "uma moral segregativa", descobrir que se tem "a democracia numa mão e o controlo na outra". Democracia? "Cada vez menos".
Soam os acordes da Eurovisão, ecoam as palavras do ex-oficial. "Patrulhas, entrar nas casas, de dia, de noite, quando quiseres, revistar as pessoas, os carros, fazer detenções...". Dean mudou. "Não seria ativista se tivesse lá estado. Vi coisas tão erradas". Aquilo "muda as pessoas".
É uma perspetiva partilhada pela maioria dos tropas? Dean não fala pela maioria. Mas sabe que, como ele fez de início, "a maioria não quer lidar com o assunto, prefere pôr o passado para trás das costas". ´É mais fácil. "Acho que todos temos o sentimento de que tudo aquilo está errado".
Errado, mas, no final, o ex-soldado lembra Nelson Mandela e cita Martin Luther King. "O arco do universo moral é longo, mas pende para a justiça". Dean é um fervoroso crente. Na liberdade.