Jejuar até à morte para conhecer Deus: os rituais da seita que tirou a vida a 110 fiéis
Ao longo do último mês, as autoridades quenianas depararam-se com um caso grave de fanatismo religioso: centenas de pessoas perderam a vida depois de passarem vários dias sem comer, seguindo as orientações de Paul Mackenzie Nthenge, pastor da Igreja Internacional das Boas Novas. O objetivo seria morrer antes do dia 15 de abril, que, segundo o líder religioso, seria a data para o fim do Mundo. A polícia já encontrou 110 corpos, mas continua a haver mais de 200 desaparecidos, entre os quais crianças.
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Paul Mackenzie Nthenge era taxista, mas tornou-se pastor quando, a 17 de agosto de 2003, fundou a Igreja Internacional das Boas Novas. Apesar de alegar que encerrou funções em 2019, o líder mudou-se para a aldeia de Shakahola, no condado de Kilifi, com alguns dos seguidores, convencendo-os de que possuía poderes proféticos e tinha assistido a aparições de Jesus, que o teria encarregado de fazer uma importante revelação: o fim do Mundo estava perto e os fiéis deveriam deixar a vida plana para se irem encontrar com Deus.
Em reuniões semanais, que ocorriam debaixo de uma árvore para que fossem dadas "lições de vida", Mackenzie vinha a instruir os seguidores a deixarem os empregos, a abandonarem as escolas, a pararem de se alimentar de "comida mundana" e a não procurarem tratamento médico em hospitais em caso de doença. Além disso, os membros da igreja não deveriam misturar-se com ninguém do mundo "exterior" se quisessem ir para o céu após a momento da morte, devendo ainda destruir todos os documentos fornecidos pelo Governo, incluindo a certidão de nascimento.
O extremismo dos cultos impulsionados pelo líder religioso já o tinha levado para a prisão duas vezes nos últimos seis anos, mas voltou agora a ser detido depois de terem sido encontrados centenas de corpos em valas comuns, entre os quais de crianças. A polícia já encontrou 110 cadáveres de pessoas que terão jejuado até à morte, porém, a Sociedade da Cruz Vermelha do Quénia continua a trabalhar numa floresta local, em busca de 210 indivíduos que foram dados como desaparecidos no âmbito da investigação.
Autorizadas pelo Governo, as buscas começaram em abril, depois de duas crianças serem sujeitas a um longo período de jejum e serem sufocadas pelos próprios pais por recomendação de Mackenzie. O caso seria apenas a ponta do icebergue, uma vez que, poucos dias depois, a polícia recebeu uma denúncia de que vários cidadãos tinham morrido à fome com a promessa de conhecerem Jesus.
"Mensagem dos Últimos Tempos"
Com presença em várias regiões do Quénia, a Igreja Internacional das Boas Novas conta com mais de 3 mil membros, sendo que cerca de mil concentram-se na cidade costeira de Malindi, onde agora decorrem as buscas pelas pessoas desaparecidas.
Como guardião da igreja, Paul Mackenzie Nthenge alegava que tinha como objetivo "difundir o evangelho do nosso senhor Jesus Cristo livre do engano e do intelecto do homem", impulsionando um programa intitulado "Mensagem dos Últimos Tempos", que evocava "ensinamentos, pregações e profecias sobre o final dos tempos".
Em 2017, lançou um canal no YouTube, onde partilhava vídeos nos quais alertava os fiéis sobre práticas "demoníacas" como usar perucas, fazer transações monetárias sem o recurso a dinheiro vivo ou ir à escola, no caso das crianças. Nesse ano, o pastor foi preso sob acusações de radicalização por ter promovido o analfabetismo infantil, pois defendia que a educação não era reconhecida pela Bíblia.
Ainda assim, só dois anos mais tarde é que Mackenzie revelou que iria fechar a igreja, alegando que "tinha chegado a hora de parar", dedicando-se apenas a rezar, na aldeia de Shakahola, com quem concordava com ele. No entanto, centenas de sermões ainda disponíveis online aparentam ter sido gravados após o alegado término de funções. Num dos vídeos partilhados na Internet, existe a referência a um próximo evento do pastor em janeiro de 2020, o que contradiz a afirmação de ter encerrado as atividades em 2019.
Este março deste ano, Mackenzie foi novamente preso "após ser vinculado à morte de duas crianças", explicou o chefe da polícia do Quénia, Japhet Koome, citado pela AFP. O pastor acabou por ser libertado após pagar uma fiança. Em declarações ao jornal "The Nation" disse estar "chocado com as acusações proferidas contra ele", mas poucas semanas depois voltaram a emergir sinais de que a seita continuava a levar a cabo cultos mortais.
A polícia encontrou, na floresta de Shakahola, 15 fiéis, muitos deles debilitados, sendo que quatro acabaram por morrer enquanto eram transferidos para o hospital. Para já, foram registados 110 óbitos, mas as autoridades acreditam que o número não deverá ficar por aqui, até porque, segundo a polícia, muitos dos sobreviventes resgatados em zonas remotas da floresta recusam-se a comer.
Vídeos com exorcismos
Nos vídeos que Mackenzie ia partilhando no canal do YouTube, que conta com milhares de seguidores, era filmado a proferir sermões para grandes congregações que se mostram absorvidas com o discurso extremista. Pode ainda observar-se grupos de crianças a segurar cartazes com mensagens apocalíticas e fiéis - muitos deles mulheres - a contorcerem-se no chão enquanto o pastor "atormenta" as forças demoníacas dentro deles.
Um dos principais temas abordados nos sermões de Mackenzie era a ideia de que a educação é satânica e essencialmente usada para extorquir dinheiro, uma vez que não "era reconhecida na Bíblia". "Eles sabem que a educação é má, mas usam-na para obter os próprios ganhos", profere o pastor num dos discursos, acrescentando: "Aqueles que vendem uniformes, escrevem livros, que fazem canetas, todo esse tipo de lixo, usam o vosso dinheiro para enriquecer enquanto vocês ficam pobres".
O líder religioso, que normalmente tinha como audiência muitas crianças, condenava as escolas por promoverem a homossexualidade através de programas de educação sexual. Mackenzie usava ainda desinformação para incentivar as mulheres - que não devem usar tranças nem efeitos no cabelo - a evitarem procurar atendimento médico durante o parto e a não vacinar os bebés.
Num dos vídeos do canal do Youtube, uma mulher conta de que forma o pastor a ajudou a dar à luz através de uma oração, sem que fosse necessária a realização de uma cesariana, acrescentando que mais tarde recebeu um "sugestão" do Espírito Santo para alertar uma vizinha contra a vacinação do filho. A fiel argumenta, com base nos ensinamentos do pastor, que as vacinas "não são necessárias", alegando que os médicos "servem a um Deus diferente".
Ainda assim, grande parte dos discursos de Mackenzie está relacionada com o cumprimento das profecias bíblicas sobre o Dia do Julgamento. O conteúdo online da igreja também apresenta partilhas sobre o fim do mundo, destruição e os supostos perigos da ciência. E há avisos frequentes de que uma força satânica omnipotente se teria infiltrado nos mais altos escalões do poder de todo o Mundo.
Repetidamente, o líder religioso fazia referência à "Nova Ordem Mundial", alegando que a Igreja Católica, a ONU e os EUA estão a sustentar um plano para criar um Governo mundial autoritário, substituindo os estados-nação.
Embora já tenha sido libertado de outras detenções no passado, o presidente do país, William Ruto, disse que o líder do culto deveria ficar na prisão, pois "o que está a ser testemunhado em Shakahola é semelhante a terrorismo". O pastor, que se entregou às autoridades a 14 de abril, será presente a tribunal no próximo dia 2 de maio.
Outro pastor detido no Quénia
Um outro influente líder religioso foi detido, esta quinta-feira, no Quénia por ser suspeito de várias mortes que ocorreram na própria quinta, que alberga também um centro religioso.
O diretor do Centro de Oração e Igreja Nova Vida, Ezequiel Odero, foi preso na cidade costeira de Malindi por suspeita de "mortes ocorridas na sua propriedade", disse Rhoda Onyancha, a porta-voz da polícia regional, acrescentando também que "foram tomadas medidas e o centro de oração foi encerrado".
Odero foi detido vestido de branco e com uma Bíblia na mão, tendo sido levado para a sede da polícia regional, em Mombaça, para ser interrogado. Contudo, as autoridades não estabeleceram qualquer ligação com a detenção de Paul Mackenzie Nthenge.
Neste caso, a maioria dos corpos exumados é de crianças e a polícia receia que o número de mortos possa crescer com o decorrer das investigações
No país da África Oriental, os esforços para controlar os cultos têm falhado. Estima-se que a nação, que tem 50 milhões de habitantes, albergue mais de quatro mil seitas deste tipo.
Maior suicídio coletivo da História
Fundada nos anos 50, a congregação Templo do Povo dos Discípulos de Cristo tornou-se popular no estado norte-americano do Indiana, tendo ganhado força na Califórnia na década seguinte. Por trás do grupo religioso, estava o pastor Jim Jones, que, nos anos 70, provocou o maior suicídio coletivo da História.
Anos antes, denúncias sobre a retórica ditatorial do líder, feitas por ex-membros, levaram Jones a deixar os EUA, encontrando um refúgio na Guiana, onde adquiriu um terreno em 1974. Três anos depois, o pastor e centenas de seguidores mudaram-se para o região, batizada em homenagem ao próprio: Jonestown.
A comunidade estava isolada e os contactos com o mundo real eram raros. Em 1978, o deputado americano Leo Ryan viajou para a Guiana com o objetivo de verificar o que se passava na região onde a seita estava estabelecida e, quando se preparava para deixar o local, foi alvo de um atentado, sendo morto a tiro pelos seguidores de Jones.
Horas depois, os fiéis do Templo do Povo ingeriram veneno provocando o maior suicídio comum da História. Dos 913 mortos, 275 eram crianças e 12 bebés.