Ciclone Idai destruiu 62 mil casas. Ajuda não chega aos bairros pobres do interior da cidade da Beira.
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O ciclone durou toda a escuridão daquela noite de 14 de março: chegou às 18 horas, o sol tinha acabado de cair, ferrou a terra, as árvores, as casas, as pessoas todas arriadas num vento de 220 km/h cheio de chuva embolada e só despegou na manhã seguinte quando o sol tornou a listrar. E Ilídio António, 45 anos, desempregado, viúvo, seis filhos, diz que continua a ver tudo ao ralenti dentro da cabeça. "Foi-se a minha casa, primeiro voaram as chapas levadas na mão gigante, fugi, e depois assim de repente a casa toda caiu e sumiu. E Ilídio olha para o escombro da sua vida sem habitação - "Estou a viver com o vizinho, ele também é viúvo, as crianças continuam com a família da minha falecida" -, suspira no vazio, torna a repetir os gestos do rodopio ciclónico com um braço, "nunca vimos coisa medonha assim", e depois não diz mais nada.
Construções precárias
As autoridades do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades de Moçambique atualizaram ontem o número de casas totalmente destruídas na cidade da Beira, a segunda maior de Moçambique com quase meio milhão de habitantes e que foi esventrada naquele dia: são 62 153 as casas que caíram. Há ainda mais 34 139 parcialmente destruídas e 15 784 inundadas. Todas elas eram, na imensa maioria, construções muito precárias em chapa ou tijolo cru.
Tudo são cáries no bairro de Ilídio que não tem esgotos, água canalizada nem luz, o Macuti, bairro municipal formigueiro, labiríntico e pardo com chão feito de lixo, galhos e pó, onde impera o cheiro da África interior, um cheiro de corpo suado e peixe ressecado, de carne estragada, de farinha triga torrada e águas pútridas, o cheiro de um pós-apocalipse permanente exótico que atrai e repele, seduz e repugna, tudo ao mesmo tempo a assaltar os sentidos.
Ninguém nos deu nada
Joana Mortá diz a mesma coisa que disse Ilídio e mais uma dezena de pessoas com quem o JN falou no Macuti: "Já fez 20 dias a catástrofe, ninguém nos deu nada. Na segunda semana vieram do governo municipal, olharam, anotaram as casas perdidas, foram embora. E mais nada". Está desvalida, Mortá, 35 anos, quatro filhos, viúva, desempregada. "Faço bolinhos de farinha frita para vender no chão, é 1 metical cada um, não, não são bons, e laranjas, às vezes, 3 meticais". É o preço da miséria: 1 euro vale 72 meticais. "Agora tou aqui a chorar a casa que não tenho", diz a mulher de cara seca e fechada a apontar o pátio vazio com os braços esticados, as palmas das mãos para o céu, "e eu só pergunto e agora, o que é de mim?".
O número de mortos aumentou - galopou na segunda-feira: são já 598 os falecidos do ciclone Idai na Beira, diz o Instituto das Calamidades. O número de pessoas afetadas também ampliou desde há dois dias, de 843 723 para 967 014, somando agora 195 287 agregados familiares. O número de famílias debaixo de ajuda humanitária subiu para 32 290. Nos 136 centros de abrigo acomodam-se ainda 131 136 pessoas. Vinte dias depois, o amanhã nunca mais chega a Moçambique.