Missão médica da Cruz Vermelha Portuguesa na sequência do ciclone Idai é um sucesso. Equipamento no valor de meio milhão vai ser doado à Beira.
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Às 8.31 horas o enfermeiro de Coimbra Severino Oliveira já estava inundado em suor. Não era só calor africano, era da operação: recebia crianças das mãos das mães, pendurava-as no gancho da balança pela alça da roupa, lia alto o valor do ponteiro, desprendia-as e devolvia-as às mamãs. Era a operação de pesagem de crianças, seguida de medição e consulta, e as crianças faziam caras cómicas, temerosas e confusas, a dar às pernitas no ar. Em meia hora, Severino pesou meia centena. E suou e sorriu a fartar.
Ali é a casa verde do desvalido Centro de Saúde de Macurungo, Beira, unidade que serve o populoso e vulnerável bairro moçambicano onde a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) montou há duas semanas um quartel-general de sete tendas com 24 operacionais e valências de hospital.
Pascoal Fernandes, diplomado da Escola de Enfermagem da Beira, único moçambicano desta missão, às 6 da tarde acusou a estafa e escureceu-se. O dia saíra-lhe do lombo: entre as 8 e as 15 horas consultou 104 pacientes. Agora é detentor do recorde. Ele sorri algum tanto: "Farei tudo pelo meu povo. Dói-me muito, pobres que não tinham nada perderam tudo. Tudo o que puder fazer".
Tem um currículo radial: foi enfermeiro do adorado presidente moçambicano Samora Machel (1936-88), foi enfermeiro do Sporting em 1989, o primeiro ano de Figo, salva-vidas no Hospital da Luz, Lisboa. Ontem, dia do recorde, reteve duas meninas na retina: uma de 15 anos com um filho de sete meses; outra de 18 que foi mãe com 14. "Não pode ser! Consultei e tive de dar aula cívica e sexual. "Não pode ser! Meninas já mães?"
O Centro é uma convulsão de gente e calor: centenas de pessoas em fila, em consulta, a tomar a vacina, a forjar caretas ao Dukoral, a tratar feridas, eczemas, contorções, inflamações, infeções, a ver do coração, uma superabundância de gente em circulação, todos ali vão ao médico - menos os três galos, mascotes locais que cirandam ali o santo dia entre o capim a debicar armados nas suas magníficas plumas pretas de petróleo.
"Mandriões, tão a ber?", diz Fernanda Lopes a olhar os galos de esguelha, "trabalhare!", e depois desfaz-se a rir. Filha óbvia do Porto, Fernanda, que é dos Médicos do Mundo (são seis acoplados à CVP, mais um operacional cedido aos espanhóis), é o centro da atenção - ainda há pouco, no regresso de autocarro pós-jornada, ia a comitiva calada a cogitar cansaços de 12 horas de trabalho, e ela levanta-se e diz alto: "Atão, ninguém fala? Morcões!", e a comitiva logo se alumiou a partilhar peripécias do dia.
Dos fogos à Beira
Enfermeira especialista em saúde mental, seríssima profissional, "Mãe Nanda" esteve nos fogos fatais de Castanheira de Pêra em 2017, "a minha família é de lá". Mas, diz ela, "isto que vemos aqui marcará ainda mais". Primeira coisa que vai fazer quando voltar a casa no fim do mês? "Abraçar a família. E tomar um banho daqueles!"
É um desejo que os atravessará a todos, também aos médicos e cirurgiões, farmacêuticos, psicólogos e logísticos, um desejo que já era de Luís Nunes, enfermeiro da linha de Cascais com saudades das ondas do seu mar familiar. Luís, olhos azuis, um bonitão que parece guerrilheiro do cinema de ação, um adicto da urgência, tem pós-graduação em missões humanitárias, catástrofes e conflitos, e é o primeiro a avançar para as calamidades. E depois? "Depois é preciso limpar a cabeça, faço surf, é a minha terapia".
A missão da CVP na Beira, que chegou cá a 25 de março e se vai manter por meses, é um sucesso de popularidade entre os pacientes moçambicanos que lhes pedem diariamente para ficar. Todo o equipamento que para aqui trouxeram, e que vale, conforme confirmou Francisco George, presidente da CVP, meio milhão de euros, será doado a Moçambique.