Há um ano, o rei emérito espanhol, Juan Carlos I de Borbón, decidiu afastar-se da vida da coroa, num gesto significativo para que a sua figura deixasse de manchar o reinado do filho, Felipe VI. Ainda assim, o passado do antigo monarca continua a salpicar a sua imagem pública, que piora com o passar dos dias.
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O Supremo Tribunal abriu, na semana passada, uma investigação sobre Juan Carlos I, por crime fiscal e branquemento de capitais no âmbito da adjudicação da construção da linha de alta velocidade entre as cidades sauditas de Meca e Medina a um grupo empresarial espanhol, por uma quantia superior a 6700 milhões de euros. O rei emérito teve um papel-chave como intermediário na negociação entre as duas partes graças à sua grande amizade com a coroa saudita.
A relação de Juan Carlos I com o país asiático vai mais longe. Em 2008, o monarca recebeu cerca de 80 milhões de euros do Ministério das Finanças saudita, que foram transferidos para uma fundação panamiana, Lucum, uma "offshore" gerida por dois testa-de-ferro, o advogado Dante Canónica e o gestor Arturo Fasana, com uma conta no banco suíço Mirabaud, da qual Juan Carlos I era o primeiro beneficiário.
Antes de fechar a conta, em 2012, o monarca transferiu, em forma de doação, os fundos que lá constavam - à volta de 48 milhões de euros - para a amante, Corinna Larsen. Foi a própria ex-amiga íntima que confessou, numa gravação em 2015, que Juan Carlos I tinha recebido uma comissão de pelo menos 50 milhões de euros por certificar o contrato da linha de alta velocidade.
Desde 2018, Yves Bertossa, procurador de Genebra, na Suíça, está a investigar Canónica, Fasana e Larsen, suspeitando de uma macro-operação de lavagem de dinheiro em relação às transferências do monarca.
primo também investigado
Além daqueles movimentos, estão sob suspeita um depósito de 1,6 milhões de euros com origem em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos, e uma transferência do Governo do Kuwait para Larsen de 3,5 milhões de euros, feita poucos dias depois de uma viagem de Juan Carlos I ao país asiático.
Aliás, o procurador suíço também está a investigar a Fundação Zagatka, com sede no Liechtenstein e propriedade de Álvaro de Orleans, primo de Juan Carlos I, que lhe pagou voos privados no valor de cinco milhões de euros entre 2016 e 2019.
O Ministério Público espanhol está à espera de um relatório final da Suíça sobre os movimentos das contas bancárias do monarca para poder avançar com a investigação.
A Justiça espanhola só pode investigar factos posteriores à abdicação do monarca, em 2014, porque, até àquele momento, encontrava-se protegido pelo artigo 56.3 da Constitução, que lhe outorgava um estatuto especial de imunidade.
Mas o antigo rei poderá ser levado a tribunal se este demonstrar que os delitos foram cometidos depois da abdicação. Porém, esta situação gera muita controvérsia na Justiça espanhola, porque alguns peritos consideram que a inviolabilidade do antigo chefe de Estado é permanente e, portanto, não perdeu aquela condição apesar de ter abdicado.
Aliás, o rei emérito mantém o seu estatuto de graduado (aforado, em espanhol), pelo que só pode ser julgado pelo Supremo Tribunal.
Este critério da inviolabilidade permanente serviu para que o Partido Socialista Operário Espanhol, Partido Popular e o Vox votassem contra a criação de uma comissão de investigação sobre a gestão das finanças do antigo monarca desde 2014.
Por seu lado, o Unidas Podemos já levou, em três ocasiões, a iniciativa a votação, mas encontrou sempre a oposição do setor mais conservador, representado por aqueles três partidos.
Amante real ameaçada
Corinna Larsen ganhou fama em 2012, quando se descobriu que era amante de Juan Carlos I. Apesar de, meses depois, ter recebido uma doação de 48 milhões de euros de Juan Carlos I, começou a sofrer ameaças por parte dos serviços de informação espanhóis (CNI) - segundo ela, com origem no próprio monarca, para manter o silêncio sobre as comissões cobradas à Arábia Saudita. A ex-amante vai testemunhar perante a Justiça espanhola no julgamento do antigo comissário José Manuel Villarejo (atualmente preso e a quem Corinna confessou a corrupção) em julho e manifestou a intenção de depor a favor do comissário e contra o CNI.