Joel Le Scouarnec, o maior criminoso sexual da história recente francesa, vai começar a ser julgado a 24 de fevereiro. Está acusado de violar e agredir sexualmente 299 crianças, ao longo de décadas. A maior parte das vítimas estava anestesiada quando foi violada.
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A primeira pergunta de todos, agora, é como foi possível que ninguém o conseguisse travar.
Há cerca de 20 anos, o FBI emitiu um alerta para Joel Le Scouarnec, dando conta de que tinha acedido por diversas vezes a vários sites de pornografia infantil. A punição foi uma pena, suspensa, de quatro meses, sem qualquer obrigação de tratamento psicológico. O médico não foi afastado do serviço, continuando a contactar com crianças nos hospitais, onde, sabe-se agora, violou e abusou sexualmente de centenas de pacientes desde o final da década de 80.
Em 2020, o nome de Le Scouarnec ecoou por toda a França, depois de ser condenado a 15 anos de prisão por ter violado quatro crianças: duas sobrinhas, uma vizinha e uma paciente, que tinha quatro anos quando foi violada em 1993.
"Não espero perdão ou compaixão... apenas o direito a tornar-me outra vez um homem melhor", afirmou em tribunal durante o julgamento, relembra a agência de notícias France-Presse. O processo tinha começado em 2017, quando uma menina de seis anos, que vivia perto da casa do médico contou que tinha sida violada. A investigação deste caso permitiu às autoridades a descoberta de que Joel Le Scouarnec tinha também abusado de duas sobrinhas e de uma paciente, de quatro anos.
A Polícia encontrou na casa do cirurgião cerca de 300 mil imagens de pornografia infantil, incluindo imagens das duas sobrinhas que tinham sido violadas. Le Scouarnec admitiu os abusos, mas numa fase inicial do processo negou o crime de violação. Durante o julgamento manteve-se praticamente todo o tempo a olhar para o chão, mas quando foi mostrado na sala de audiência um vídeo das bonecas em tamanho real encontradas em sua casa, Le Scouarnec olhou para o ecrã.
Aos 73 anos, o médico, que está na cadeia desde 2017, volta a sentar-se no banco dos réus, agora acusado de violar e de abusar sexualmente de 299 crianças, entre 1989 e 2014. A maior parte das vítimas são pacientes e grande parte estava anestesiada quando os crimes foram cometidos.
O julgamento vai decorrer em Vannes, no norte de França, e é o resultado de uma investigação que decorreu ao longo de anos, permitindo descobrir as dezenas de vítimas de Le Scouarnec, que continua a negar algumas das acusações.
Nomes das vítimas num diário de horrores
Uma das peças-chave da investigação foi um diário onde o médico anotou os nomes e os detalhes sórdidos dos seus crimes. Muitas das vítimas de Joel Le Scouarnec souberam apenas o que tinha acontecido quando a Polícia lhes bateu à porta. Muitas viviam atormentadas por traumas sem explicação, apenas com fragmentos na memória de que algo terrível lhes teria acontecido quando eram menores, mas sem saberem exatamente o quê, nem quando, nem como.
Ao longo de 25 anos, o respeitado médico de uma pequena cidade anotou os abusos praticados sobre as crianças que tratava. Ficheiros determinantes para a investigação, e para que as vítimas tivessem finalmente uma resposta para os seus medos mais sombrios. Francesca Satta, advogada de algumas das vítimas, disse à BBC que entre os clientes tinha dois homens que se lembravam dos crimes e que acabaram por suicidar-se. Uma outra criança abusada, agora com mais de 30 anos, casada, conta que a Polícia lhe bateu à porta porque o seu nome constava nos diários de Le Scouarnec. "Leram-me o que ele tinha escrito sobre mim e eu só pensava que aquilo era impossível".
Muitas das vítimas viviam vidas normais até a Polícia as contactar. Olivia Mons, da Associação Francesa de Vítimas, acrescenta que o caso ajudou algumas delas a ter finalmente uma explicação para as suas vidas, mas que muitas estão agora abaladas e a viver uma fase conturbada. "Tinha flashbacks de alguém a vir ter comigo ao hospital, a levantar os lençóis e a dizer que ia apenas verificar se estava tudo bem comigo. Ele violou-me", conta uma das alegadas vítimas.
Uma outra advogada, Margaux Castex, disse à BBC que a cliente que representa vive agora traumatizada e preferia nunca ter sabido o que lhe tinha acontecido.
Ao longo de todas estas décadas, o maior criminoso sexual da história francesa conseguiu escapar, através de uma série de erros e omissões. Mesmo depois do alerta das autoridades norte-americanas, logrou continuar a trabalhar num hospital, com contato com menores, onde escolhia as suas vítimas. A ex-mulher, com quem teve três filhos, nega alguma vez ter suspeitado dos crimes.
Frederic Benoist, da associação Voz das Crianças, criticou o facto de os procuradores do Ministério Público francês não terem partilhado com as autoridades médicas o alerta que chegou do FBI. Uma crítica que se estende aos médicos que trabalhavam com Joel Le Scouarnec. "Temos provas de que vários colegas sabiam, e nenhum deles fez nada", afirmou à estação britânica. "Encontramos muitas circunstâncias em que ele poderia ter sido travado, mas não foi, e as consequências são trágicas".
Na cidade de Vannes, o edifício de uma universidade está agora a ser preparado para o massivo julgamento, onde estarão as vítimas, os seus representantes legais e as famílias. O julgamento começa a 24 de fevereiro e deve terminar em junho.
Em França, acredita-se que, à semelhança do que aocnteceu com o caso Gisèle Pelicot, o julgamento de Le Scouarnec venha a constituir um momento de viragem sobre a proteção as crianças vítimas de abuso sexual.