Oito mil migrantes entraram numa semana no enclave espanhol. Pressão é de Marrocos, mas como e porquê?
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Um bebé inerte, que escorregou das costas do pai no mar, é o rosto do gelo e da mortificação. Salvou-o Juan Fran, soldado da Guardia Civil de Espanha que se atira à água vestido, irreprimido. Diz: "Fui treinado para enfrentar quase qualquer situação no mar, mas esta maré humana com centenas de desesperados, isto nunca imaginei viver".
Luna, voluntária da Cruz Vermelha que abraça um senegalês em pranto é o rosto da humanidade. Mas a humanidade tem um anverso: Luna primeiro tornou-se viral e depois viu-se insultada por abraçar um negro ilegal.
Um rapaz chega a Ceuta a nadar, vem exausto, traz garrafas de plástico atadas para boiar, é o rosto da absoluta desesperação. Foi-se a chorar, rejeitado sem apelo, devolvido a Marrocos.
Desde dia 17 que estes e outros calvários e perigos se cravaram na mente ocidental. No espaço de uma semana, uma enxurrada de oito mil migrantes africanos, na maioria marroquinos, muitos menores, entraram ilegalmente em espaço europeu. A nado, arribaram em Ceuta, cidade autónoma de Espanha em terra africana, e são já mais do que todos os outros que o intentaram desde o início do ano. Mas como, e porquê, aconteceu?
Absoluta crise humana
Dos oito mil migrantes, 6.500, na maioria homens, voltaram a Marrocos, disse o Governo espanhol. Dos menores, o restante grupo vulnerável, e do qual poucos vão ficar, diz estar "a trabalhar no seu melhor interesse"; aqueles que são procurados por familiares estão a ser devolvidos com a intervenção de Marrocos e das autoridades espanholas.
Nos últimos dias, vários outros tentaram saltar irregularmente o muro de Melilla, outra cidade autónoma espanhola na região. Ser-lhes-ão aplicados procedimentos apropriados e, caso solicitem proteção internacional e não atendam aos critérios, serão devolvidos.
Ceuta vive agora uma "absoluta crise humanitária", dizem a uma só voz cinco ONG que operam em Ceuta. Resumem a situação: "A crise é causada pela situação diplomática caracterizada por pressão política e pela instrumentalização dos migrantes por Marrocos, tornada possível pelas políticas migratórias enraizadas".
As ONG falam num "caos em turbilhão", apontam "violações de direitos" e exigem "o cumprimento da legislação vigente em matéria de proteção dos direitos básicos e fundamentais de menores e migrantes".
Brahim Ghali: terá sido este nome que fez espoletar toda a situação. Ghali, líder separatista do Saara Ocidental, território que aguarda direito à autodeterminação e que Marrocos considera seu, foi acolhido em Espanha para tratamento à covid-19. Marrocos não gostou e ergueu a crise: num gesto revanchista, aliviou a guarda na sua fronteira e permitiu a enxurrada migrante, entretanto já travada pelo reforço fronteiriço.
Retaliar e pressionar
Conforme diz Isabel Carvalhais, professora associada da Universidade do Minho, e deputada europeia, Marrocos está a retaliar contra Espanha mas também a pressionar a Europa sobre a questão Saarauí.
A eurodeputada socialista Isabel Santos concorda: "Os migrantes são vítimas nos seus Estados, onde vivem em condições muitas vezes miseráveis, e são vítimas deste jogo político em que são literalmente jogadas como armas de arremesso". A solução é "uma política efetiva de cooperação com os países de origem e os países de trânsito", além de "uma política de imigração que abra canais legais para a imigração legal".
O eurodeputado Paulo Rangel (PSD), que falava também no "webinar" "Relações Externas e Direitos Humanos", alerta: "Sou o mais favorável à boa integração dos migrantes, mas uma coisa é clara: não podem vir todos".
A cidade é de Espanha mas fica em África
Ceuta tem estatuto de cidade autónoma desde 1995, é administrada por Espanha, mas fica no continente africano, à entrada do Estreito de Gibraltar, no Mar Mediterrâneo. Há barreiras na fronteira com Marrocos, construídas por Espanha, para evitar a entrada de imigrantes vindos de África. A Constituição espanhola dá a Ceuta, desde 1978, a possibilidade de se constituir como comunidade autónoma. A última visita dos reis de Espanha deu-se em 2007.