Uma investigação internacional de jornalistas revela casos de exploração laboral, e eventualmente de tráfico humano, de trabalhadores estrangeiros de empresas como o McDonald's ou a Amazon na Arábia Saudita. Faziam jornadas de 14 horas e pagavam para trabalhar e caso fossem despedidos.
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Enganados por empresas locais com contratos com gigantes como a Amazon ou McDonald's ou por companhias de trabalho temporário, trabalhadores migrantes estavam sujeitos a taxas arbitrárias e extorsionárias e impedidos de sair do país mesmo depois de despedidos. Viviam em acomodações infestadas de baratas e sem condições, com os passaportes confiscados, em situações que configuram exploração laboral e até tráfico de seres humanos.
Um trabalho jornalístico liderado pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (CIJI), ouviu cerca de 100 imigrantes, atuais e antigos, que revelaram as condições desumanas e as mentiras que lhes forma contadas quando decidiram endividar-se nos países de origem para procurar um emprego na Arábia Saudita.
Na Amazon, segundo o relato de cerca de 50 trabalhadores, foram contratados no Nepal com a promessa de que iram trabalhar para a gigante norte-americana na Arábia Saudita. À chegada, descobriram que eram empregados de empresas sauditas de trabalho temporário ou subcontratadas e recebiam cerca de 325 euros por mês, um quarto do que ganhava um trabalhador local da empresa.
Trabalhavam 13 a 14 horas por dia
Segundo os relatos recolhidos pela investigação, trabalhavam turnos de 13 ou 14 horas por dia e eram desaconselhados de fazer pausas para ir à casa de banho ou para beber água. “Sentia que vivia numa prisão”, contou Buddhiman Sunar, que trabalhou numa filial da McDonald's em Riade, na capital da Arábia Saudita até 2022. Em declarações registadas pelo jornal britânico “The Guardian”, diz que o ambiente de trabalho era abusivo e que os gerentes lhe chamavam “animal” e perguntavam se tinha cérebro.
Segundo a investigação, produzida pela delegação do “The Guardian” nos EUA, pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), pela NBC News e pelos Repórteres Árabes para o Jornalismo de Investigação, os trabalhadores estavam "acomodados" em grupos de seis a oito pessoas por quarto em instalações infestadas com baratas e com água salgada e pouco fiável. O trabalho foi desenvolvido no âmbito do “Trafficking Inc”, um esforço conjunto de reportagem que tem vindo a analisar o tráfico de seres humanos e a exploração laboral na Ásia, nos Estados Unidos, em África e no Médio Oriente.
“Matem-nos ou mandem-nos para casa, mas não nos façam sofre mais”
Vários trabalhadores ouvidos pela investigação jornalista recordam que foram obrigados a pagar taxas exorbitantes, no valor de vários salários mensais. Funcionários de empresas como McDonald's e Amazon dizem que tiveram de pagar uma "taxa de recrutamento" no país de origem, de cerca de dois mil euros, embora o Governo do Nepal tenha determinado que não poderia ser superior a 85 euros. Quando insistiam em sair, podiam ainda ser confrontados com o pagamento de um "taxa de libertação", muitas vezes superior a mil euros.
“Já tínhamos pagado para vir para aqui e agora tínhamos de pagar mais para regressar a casa? Senti-me encurralado”, disse um trabalhador, ainda no ativo, que preferiu o anonimato, com medo de represálias. A viver num país pobre e sem grandes condições materiais, os trabalhadores endividaram-se para pagar estas taxas e as viagens para a Arábia Saudita, na esperança de trabalhar para grandes empresas, com um salário justo e condições de trabalho dignas. Mas encontraram o oposto e não podiam deixar os empregos porque tinham uma dívida a pagar.
“Matem-nos ou mandem-nos para casa, mas não nos façam sofre mais”, desabafou Momtaj Mansur, um nepalês despedido da Amazon. Dispensado, tentou arranjar solução junto da empresa de trabalho temporário saudita que detinha o contrato, mas viu-se encostado à parede, entre ficar “no Inferno” das instalações que lhes eram designadas depois de despedidos, ou endividar ainda mais a família no Nepal para arranjar 1200 euros para pagar a taxa de libertação, por incumprimento de contrato, mesmo tendo sido despedido.
Multa de 1300 euros para ir ao funeral do pai
A investigação encontrou relatos de trabalhadores obrigados a arranjar um substituto, que seria responsabilizado financeiramente no caso de não regressarem, caso precisassem de se ausentar para ir ao Nepal. A alternativa era uma multa. Um dos trabalhadores diz que lhe pediram para pagar uma coima de 1500 euros para ir ao funeral do pai.
Há ainda o caso de 14 trabalhadores do InterContinental Hotels Group (IHG) e da Chuck E Cheese, que acusam os gestores lhes confiscaram os passaportes. Um responsável da Chuck na Arábia Saudita diz que o faziam "para evitar que fugissem par trabalhar noutras empresas". Trabalhadores da IGH disseram, ainda que não podiam demitir-se para aceitar emprego melhor noutro local.
Foi o caso de Macrae Lee, que também trabalhou num McDonald's em Riade. Lembra que chegava a trabalhar 20 a 22 horas por dia, sem direito a dias de descanso, mesmo estando doente e com febre. Quando quis desistir, o gerente reteve a documentação que podia permitir arranjar outro emprego, acabando desempregado e a mendigar pelas ruas por água e comida.
McDonald's e Amazon preocupadas
Em resposta às perguntas do jornal britânico "The Guardian" e do Consórcio de Jornalistas, a Amazon disse estar “extremamente preocupada” com a forma como alguns subcontratados trataram os trabalhadores. Admitindo que “não foram tratados com a dignidade que mereciam”, agradeceu-lhes terem falado e anunciou que vai rever as políticas globais de contratação.
A McDonald's disse ter tomado conhecimento de alegações "extremamente perturbadoras", e diz que atualizou as políticas de contratação global no ano passado. "Nenhum trabalhador migrante paga as despesas de recrutamento e os custos conexos para garantir o seu emprego", afirmou.
Michael Page, vice-diretor da divisão do Médio Oriente e Norte de África da Human Rights Watch, afirma que as grandes empresas têm a responsabilidade, de acordo com as normas das Nações Unidas em matéria de direitos humanos, de verificar as operações globais e cadeias de abastecimento - mesmo quando entrega a exploração a um franchisado.