Na noite de 13 de novembro de 2015, em Paris e em Saint-Denis, o grupo terrorista Estado Islâmico levou a cabo ataques que provocaram mais de 180 vítimas mortais e feriram mais de 350. Quase 90 morreram na sala de espetáculos Bataclan, uma das mais célebres da capital francesa. Oito atacantes foram abatidos.
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A calma. É da calma que pairou no ar no Hospital Saint-Antoine, em Paris, na noite dos atentados de 13 de novembro de 2015 que Youri Yordanov mais se lembra. Estava com 34 anos e tinha entrado ao serviço pouco depois das 21 horas, para chefiar a Urgência daquele que é um dos hospitais mais centrais da capital francesa, situado perto do Bataclan e de locais onde explodiram bombas. Era uma noite de sexta-feira, como tantas outras, e esperava-se o serviço habitual. Deixou de o ser quando começaram a chegar as vítimas dos ataques, quase todas com ferimentos de armas de fogo. Uma após a outra. Sem gritos. Só naquele hospital, deram entrada 50 vítimas dos atentados terroristas. Nenhuma acabou por morrer. Mais de três anos volvidos, Youri Yordanov ainda se recorda de cada pormenor do que viveu, numa noite que o mudou enquanto médico e enquanto pessoa. Mas é também com uma dolorosa calma que traduz as memórias em palavras, como se ainda estivesse à procura de algumas das respostas para o que aconteceu. Em Paris, naquela noite, o massacre vitimou, no imediato, 130 pessoas. O JN falou com Youri Yordanov em Coimbra, no âmbito do oitavo Congresso Médico-Científico "In4Med".
Qual é a maior memória que ainda tem daquela noite, em que estava a chefiar a Urgência do hospital?
Não é necessariamente a maior, mas, sim, uma das coisas que guardo comigo, que é o quão calmas as vítimas estavam. Estavam extremamente calmas. E isso foi muito fascinante. Não havia gritos nem nada. Toda a gente estava calma e quase todos, quando eu estava a dar-lhes analgésicos, diziam-me: "guarde isso para os outros, porque vai ter outros". E isso foi muito, muito forte.
Como é que souberam o que se estava a passar a poucos metros de vocês?
Foi através das vítimas. Percebi que alguma coisa se estava a passar quando os pacientes começaram a chegar. E depois do primeiro, tivemos o segundo, o terceiro, o quarto...E foram eles que nos disseram que alguma coisa de muito mal estava a acontecer lá fora.
No início, percebeu a gravidade da situação?
Não. Só percebemos depois. Durante, enquanto estávamos a a lidar com aquilo, tínhamos a sensação de que se tratava de algo grande e mau, mas não percebemos o quão importante era. Até porque havia várias coisas que ainda estavam a acontecer naquele preciso momento.
Qual foi a sua prioridade quando os pacientes começaram a chegar?
Manter o hospital a trabalhar. Basicamente, manter a nossa cabeça fora de água. Tínhamos pacientes a entrar, sabíamos que mais pacientes iam chegar e não sabíamos quando é que aquilo ia parar. Portanto, a nossa prioridade foi tomar conta dos doentes que tínhamos e preparar-nos para receber mais.
Estavam preparados?
Para isto precisamente, não. Tínhamos planos de emergência, claro. Mas para este tipo de ataques em específico não tínhamos.
E acha que os hospitais, quer os franceses, quer os europeus, no geral, estão preparados para eventuais situações semelhantes?
Hoje em dia, sim. Nós, naquela altura, estávamos preparados, mas não necessariamente para este tipo de ataques em concreto. França já tinha sofrido vários tipos de ataques terroristas antes deste. Os ataques de 1995 foram, na maioria, através de bombas. Londres sofreu também com bombistas. O maior ataque terrorista de sempre foi em Espanha e foi, também, com bombas. Portanto, quase que interiorizámos que, a determinada altura, íamos ter bombas a explodir em algum lado. Mas eu, pelo menos, nunca imaginei que íamos ter este tipo de ataques com armas de guerra, em Paris. Não, nunca pensei.
Teve medo de que o hospital fosse atacado também naquela noite?
Durante os acontecimentos, não houve tempo para pensar nisso. A determinada altura, recebemos um oficial da Polícia que foi ferido. Ele entrou, encapuzado, e alguns dos seus colegas entraram ao lado dele, com armas. Foi aí que percebemos que qualquer pessoa podia entrar no hospital. Mas é para isso que o hospital existe. Estamos abertos e temos que continuar abertos, porque as pessoas precisam de entrar nos hospitais. E foi aí que pensei: "OK, isto foi um polícia, mas podia ter sido um terrorista". Esse foi o momento em que realmente fiquei com algum receio.
Terminou o seu turno às 18 horas do dia seguinte. Como é que se vai para casa depois de se passar por uma situação daquelas?
Não fui para casa, fui para outro hospital. No meu caminho para casa, há outro grande hospital, o Salpêtrière, e alguns amigos meus estavam lá de turno também naquela noite. Então, não fui para casa. Parei lá e fui tomar um café com eles.
E como é que os encontrou?
Como eu. Tínhamos acabado de lidar com uma situação que era tão incrível, tão fora do habitual, que estávamos grogues, quase como se estivéssemos bêbados, basicamente.
A situação que viveu naquela noite foi a mais difícil pela qual passou enquanto médico?
Foi a mais desafiante, porque estive a fazer coisas que não estava habituado a fazer. Lidar com um paciente, eu sei lidar. Lidar com situações difíceis e com pacientes difíceis, também sei fazê-lo, já aconteceu e vai voltar a acontecer. Agora, naquela situação, gerir um hospital e mudar a forma como um hospital trabalha só para um acontecimento? Essa, sim, foi a parte complicada.
Aquela noite mudou-o enquanto pessoa e enquanto médico?
Como médico, mudou a forma como lido com situações difíceis. Como pessoa, sim, mudou-me. Mas não consigo dizer como. Voltar à realidade, depois daquilo tudo, foi um bocado difícil. Para todos nós, que trabalhámos naquela noite, tudo parecia sem utilidade, desinteressante ou pouco grave depois daquela noite. Portanto, foi difícil voltar para a vida normal.