O presidente norte-americano Donald Trump fez inúmeras alegações falsas e enganadoras no seu discurso mais de hora e meia de terça-feira, numa sessão conjunta do Congresso dos EUA, incluindo em temas como economia, clima e imigração, bem como sobre o ex-presidente Joe Biden.
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Tarifas
Trump defendeu as tarifas como forma de aumentar as receitas do governo, uma forma de incentivar mais produção nacional e uma moeda de troca para induzir outros países a reduzirem as suas próprias barreiras comerciais. Embora Trump insista que estas tarifas sejam pagas por empresas estrangeiras, a maior parte do custo é suportada por empresas e particulares nos EUA. Um estudo da Comissão de Comércio Internacional dos EUA revelou que os americanos suportaram quase todo o custo das tarifas do primeiro mandato de Trump sobre os produtos chineses.
Preço dos ovos
Trump disse ex-presidente Joe Biden “deixou o preço dos ovos descontrolar-se”. A gripe aviária fez com que os preços dos ovos subissem porque o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos exige o abate para impedir a propagação caso o vírus seja detetado. É uma prática que ocorreu durante a administração Biden, mas também continua sob a administração Trump, à medida que o vírus continua a infetar aves em todo o país. Quando Biden assumiu o cargo, o preço médio de uma caixa com uma dúzia de ovos de grau A era de 1,47 dólares, de acordo com dados do "Bureau of Labor Statistics". Em janeiro de 2023, quando a gripe aviária se espalhou, uma dúzia de ovos passou a custar 4,82 dólares em média, um aumento de 228%. Quando Biden deixou o cargo em janeiro, uma caixa de ovos custava 4,95 dólares em média, um aumento de 2,7% em relação ao ano anterior. Devido à escassez de oferta, os preços dos ovos deverão aumentar 41,1% este ano.
Clima
No seu primeiro dia de mandato, Trump assinou uma ordem executiva "terminando com o Green New Deal", ao qual chamou, no Congresso, "Green New Scam". Ao abrigo da ordem executiva, o governo congelou os pagamentos de subsídios para uma vasta gama de projetos climáticos e ambientais ao abrigo da Lei de Redução da Inflação e da Lei de Investimento em Infraestruturas e Emprego. Estas leis foram assinadas por Biden e autorizam centenas de milhares de milhões de dólares destinados à proteção do ambiente e ao estímulo ao investimento em energia limpa e novas infraestruturas. Os estados liderados pelos republicanos foram grandes beneficiários destes gastos, de acordo com a "NPR".
Acordo de Paris
Trump gabou-se da retirada pela segunda vez do acordo climático de Paris, alegando que o acordo climático histórico estava a custar aos EUA “triliões de dólares que outros países não estavam a pagar”. Biden prometeu pagar 11,4 mil milhões de dólares por ano para financiamento climático internacional ao assumir o cargo. No entanto, a contribuição dos EUA para uma meta financeira global revelou-se muito menor porque o Congresso atribuiu muito menos dinheiro do que a meta de Biden. O Departamento de Estado de Biden anunciou que tinha atribuído 5,8 mil milhões de dólares ao financiamento climático internacional até 2022. As contribuições dos EUA para o financiamento climático nunca atingiram biliões de dólares.
Migrantes ilegais
Trump afirmou que, desde que voltou a assumir o cargo, já atingiu o menor número de passagens ilegais de fronteira "já registado". Segundo a CNN, esta afirmação é falsa. Mais precisamente, estatísticas federais oficiais mostram que houve menos encontros da Patrulha de Fronteiras com migrantes na fronteira sudoeste em vários meses do início da década de 1960, bem como em vários meses de décadas anteriores. Nas redes sociais, o presidente alegou que foram feitas 8326 apreensões da Patrulha de Fronteiras na fronteira sul em fevereiro, o primeiro mês completo do seu segundo mandato.
Migrantes vindos de instituições mentais
Trump repetiu que outros países alegadamente libertaram pessoas das suas "instituições mentais e asilos para loucos" para os EUA como migrantes. No entanto, não há provas que corroborem a alegação do presidente. O apartidário "Migration Policy Institute" estima que, de 2021 a 2024, a administração Biden permitiu a entrada nos EUA de mais de 5,8 milhões de imigrantes, que foram examinados antes de serem autorizados a entrar no país.
Departamento de Eficiência Governamental (DOGE)
Trump afirmou que o Departamento de Eficiência Governamental, liderado por Elon Musk, “encontrou centenas de milhares de milhões de dólares” em fraudes, número esse que não é corroborado pelos dados disponíveis. No dia do discurso de Trump ao Congresso, o DOGE afirmou, no seu site, que o seu trabalho permitiu poupar cerca de 105 mil milhões de dólares aos contribuintes. Porém, não forneceu provas para corroborar um número tão elevado. O DOGE listou milhares de contratos, subsídios e arrendamentos governamentais que foram cancelados, numa contagem pública marcada por erros e alterações repetidas após falhas identificadas pelos meios de comunicação norte-americanos.
Por exemplo, o DOGE identificou gastos governamentais de “oito milhões de dólares para tornar ratos transgénero”. No entanto, entre os anos fiscais de 2021 e 2022, os Institutos Nacionais de Saúde concederam um total de 477.121 dólares a três projetos que envolveram a administração de terapia hormonal feminizante em macacos para compreender como esta pode afetar o sistema imunitário e torná-los mais suscetíveis ao VIH. Não é claro de onde surgiu o valor de oito milhões de dólares. Musk e outros aliados de Trump alegaram que o trabalho do DOGE visa combater o desperdício, a fraude e o abuso, mas o departamento não divulgou provas de que os contratos cancelados fossem fraudulentos.
Acusações contra Biden
Trump alegou que Biden usou o seu cargo para o processar “cruelmente”. Porém, as duas acusações federais de Trump foram apresentadas por um procurador especial, Jack Smith. Smith foi nomeado em novembro de 2022 pelo procurador-geral Merrick Garland, nomeado por Biden, mas não há provas de que Biden estivesse envolvido no esforço de acusação nem que Biden ordenou pessoalmente as acusações. Garland disse que se demitiria se Biden lhe pedisse para agir contra Trump, mas que tinha a certeza de que isso nunca aconteceria. Trump nunca forneceu qualquer prova de que Biden estivesse pessoalmente envolvido nos processos federais. Os dois casos foram arquivados por Smith depois de Trump ter sido reeleito.
Trump afirmou também falsamente no Congresso que, sob a administração Biden, a América sofreu a “pior inflação em 48 anos, mas talvez até na história" do país. A taxa de inflação anual dos EUA atingiu um máximo de 40 anos em junho de 2022, quando era de 9,1%, mas isso não são "48 anos". Além disso, a taxa de 9,1% não chegou perto do recorde histórico de 23,7%, estabelecido em 1920. A taxa no último mês completo da administração Biden, dezembro de 2024, foi de 2,9%. Foi de 3% em janeiro de 2025, um mês em parte com Biden e em parte com Trump. A rápida ascensão da inflação, que começou no início de 2021, foi o resultado de uma confluência de fatores, incluindo efeitos da pandemia de covid-19, tais como cadeias de abastecimento confusas e consequências geopolíticas, nomeadamente a invasão da Ucrânia pela Rússia, que desencadearam choques nos preços dos alimentos e da energia.
Taxas de autismo
Trump falou sobre o recente aumento da prevalência do autismo nos EUA, dizendo que "há pouco tempo, e nem se pode acreditar nestes números, uma em cada 10 mil crianças tinha autismo e agora é uma em 36". Alguns dos primeiros estudos sobre o diagnóstico de autismo, das décadas de 1960 e 1970, estimaram a prevalência de autismo reportada na faixa de dois a quatro casos por cada 10 mil crianças. Embora a taxa de diagnóstico tenha aumentado constantemente nos últimos anos, já era de 1 em cada 150 crianças em 2000, há 25 anos, de acordo com dados dos Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA. De facto, em 2020, era de uma em cada 36 crianças aos oito anos. Segundo os especialistas, a melhoria significativa na identificação e diagnóstico do autismo é um fator-chave por detrás do aumento das taxas.
Recrutamento militar
Trump afirmou que o exército norte-americano está a ter "um dos melhores resultados de recrutamento da história" e que o Exército norte-americano teve o seu "melhor mês de recrutamento em 15 anos" em janeiro, acrescentando que "há apenas alguns meses" os EUA "não conseguiam recrutar em lado nenhum". De acordo com o Departamento de Defesa, o recrutamento militar já tinha aumentado mais de 10% no ano fiscal de 2024 em comparação com o ano anterior, e o programa de entrada tardia para militares no ativo aumentou 10% no ano fiscal de 2025.
Benefícios da Segurança Social
Trump disse que 4,7 milhões de pessoas com pelo menos 100 anos ainda estão listadas na base de dados da Administração da Segurança Social e que "lhes está a ser pago dinheiro". Os dados públicos da Administração da Segurança Social mostram que cerca de 89 mil pessoas com 99 anos ou mais recebiam prestações da Segurança Social em dezembro de 2024, nem perto dos milhões que Trump invocou. Além disso, a grande maioria destas pessoas não tem data de falecimento listada na base de dados da Segurança Social, mas isso não significa que estejam realmente a receber benefícios mensais.
Ajuda à Ucrânia
Trump repetiu uma falsa alegação regular de que os EUA gastaram 350 mil milhões de dólares para apoiar a defesa da Ucrânia, enquanto a Europa forneceu, coletivamente, apenas 100 mil milhões de dólares em ajuda. De acordo com o Instituto Kiel para a Economia Mundial, um "think tank" alemão que acompanha de perto a ajuda em tempo de guerra à Ucrânia, a Europa comprometeu-se a muito mais ajuda militar, financeira e humanitária em tempo de guerra à Ucrânia até dezembro de 2024. São cerca de mais 263 mil milhões de dólares.
A Europa também alocou mais ajuda militar, financeira e humanitária (cerca de 140 mil milhões de dólares) do que os EUA alocaram (cerca de 121 mil milhões de dólares). Os EUA tiveram uma vantagem numa categoria específica, a ajuda militar alocada, fornecendo cerca de 68 mil milhões de dólares, em comparação com os cerca de 66 mil milhões de dólares da Europa.
Mortes no Canal do Panamá
Trump voltou a alegar falsamente que 38 mil americanos morreram durante a construção do Canal do Panamá. Embora os registos centenários sejam imprecisos, mostram que cerca de 5600 pessoas morreram durante a fase de construção do canal nos Estados Unidos, entre 1903 e 1914. Segundo Julie Greene, professora de História na Universidade de Maryland e autora do livro “The Canal Builders: Making America’s Empire at the Panama Canal”, "a grande maioria eram afro-caribenhas”, como trabalhadores dos Barbados e da Jamaica. Por sua vez, o falecido historiador David McCullough, autor de outro livro sobre a construção do canal, descobriu que “o número de americanos brancos que morreram foi de cerca de 350”.