O ano passado ficou marcado pela crise migratória na Europa. Só o Canal da Mancha, atualmente uma das travessias mais requisitadas do Velho Continente, registou em 2021 um total de mais de 28 mil migrantes que tentaram entrar no Reino Unido, um recorde em relação ao ano anterior e que está a dar dores de cabeça ao Governo de Boris Johnson.
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O aumento do controlo policial em outras vias de acesso europeias reduziu os números e desviou o fluxo de pessoas para o Canal da Mancha, que até há alguns anos era uma rota onde havia pouco volume de migrantes. Agora, as travessias de pessoas que querem ir viver para Inglaterra tornaram-se numa preocupação para o primeiro-ministro britânico e para a ministra do Interior, Priti Patel, já que o líder prometeu apertar as restrições à imigração após o Brexit.
Recentemente, os dados apresentados pelo Ministério do Interior do país mostram um aumento de cerca de 20 mil pessoas em relação a 2020, apesar dos esforços das autoridades para lidar com a perigosa travessia. Os números são alarmantes e o ministro da Imigração, Tom Pursglove, destacou os esforços do Governo para reformar o sistema de imigração e lutar contra as pessoas que lucram financeiramente ao ajudar imigrantes a atravessar o canal.
Pursglove referiu que a Lei de Nacionalidade e Fronteiras, que está a ser promovida pelo Executivo britânico, vai introduzir sentenças contra quem entrar ilegalmente no Reino Unido, arriscando até quatro anos de prisão, tal como irá impor penas para todos aqueles que facilitam a entrada ilegal no país, que poderão ser condenados a prisão perpétua. A proposta de lei quer ainda facilitar às autoridades britânicas a transferência de refugiados para centros de processamento em países terceiros, mas o Governo não especificou quais.
A legislação está em fase final de tramitação na Câmara dos Lordes e foi pensada pela ministra do Interior. "É uma solução de longo prazo", explicou Patel no parlamento, no mês passado.
No entanto, a proposta tem sido alvo de duras críticas por priorizar a segurança e deixar de lado a questão humanitária. Emilie McDonnell, advogada britânica, alerta que a legislação "vai desmantelar os princípios fundamentais do regime internacional de refugiados que o Reino Unido ajudou a estabelecer". Já a Amnistia Internacional afirma que "criará obstáculos e danos significativos às pessoas que procuram apoio no sistema de asilo de Londres".
Alheia aos múltiplos pareceres, Patel alega que regras mais duras são necessárias para travar a migração ilegal, reiterando que a maior parte das pessoas que tentam entrar no país são "imigrantes económicos", que não fogem dos países de origem por motivos políticos, acabando por ocupar o lugar de pessoas que realmente necessitam de ser beneficiadas pelo sistema de asilo britânico, cita o jornal "El país".
Perante o repetido argumento de que as leis atuais permitem abusos nos procedimentos de asilo, entidades como o Refugee Council têm tentado mostrar que a realidade é outra. De acordo com a organização, 70% das pessoas que chegaram à costa britânica, ou que foram intercedas na Mancha, durante o ano passado, vieram essencialmente de cinco países: Irão, Iraque, Sudão, Síria e Vietname. Os dados indicam ainda que os migrantes procuram asilo para fugir a contextos de guerra e insegurança.
Os números, defende a organização, negam que os indivíduos que tentam passar o canal sejam maioritariamente imigrantes económicos, como alega Patel. "O Governo quer avançar com uma política brutal e perigosa que só irá fazer com que mais pessoas morram afogadas na Mancha", alertou Tim Naor Hilton, diretor executivo do Refugee Council, citado pelo jornal espanhol.
Por outro lado, a lei que está a ser desenvolvida no Reino Unido, também dá ao Governo, o direito de retirar a cidadania britânica sem ter notificado o interessado. Na perspetiva de Nuno Cunha Santos, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, esta opção pode não ser o melhor caminho a tomar, uma vez que "retirar a nacionalidade por motivos de interesse público é algo demasiado lato e muito cinzento". O docente admite ter dúvidas sobre se a legislação vai "promover uma diminuição do número de migrantes no Canal da Mancha".
Só na segunda-feira, noticia a "BBC", quase 100 migrantes cruzaram o Canal da Mancha em três pequenos barcos. Entre 2018 e 2019, quando começaram estas travessias, o Reino Unido chegou a mobilizar três fragatas da Marinha para o Canal, mas atualmente não tem barcos militares envolvidos na operação. A Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas indica que no ano passado chegaram à Europa 144.440 migrantes, sendo que 111.144 o fizeram através da via marítima.