Numa Gaza em que sobreviver é uma luta constante, grande parte da população é jovem. Com mais de um milhão de menores, o que representa cerca de metade dos palestinianos no enclave, os que resistem à agressão israelita enfrentam uma dura realidade, com fome, amputações, perda dos pais e a destruição de escolas.
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O recente alerta das Nações Unidas de que 14 mil bebés podem morrer de fome em breve ocorre após dois meses e meio de bloqueio israelita ao enclave palestiniano. Neste período, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reportou a morte de pelo menos 57 menores por desnutrição.
Apesar do anúncio de que as autoridades hebraicas permitiram a entrada de cerca de uma centena de camiões com ajuda humanitária, a ONU informou que não conseguiu distribuir o material devido a atrasos provocados por Telavive. Nesta quarta-feira, os Emirados Árabes Unidos anunciaram um acordo com Israel para a entrega de “ajuda humanitária urgente” que “vai lidar com as necessidades alimentares de aproximadamente 15 mil civis na Faixa de Gaza na fase inicial”.
A “gota” de ajuda num “oceano” de devastação, como classificou a própria ONU, não durará muito tempo num território de mais de dois milhões de pessoas. A fome, destaca a OMS, gera danos a longo prazo, provocando “o crescimento atrofiado” e prejudicando “o desenvolvimento cognitivo e a saúde”. “Vi-os [nas] enfermarias... Uma criança de cinco anos, e pensei que tinha dois anos e meio”, relatou Richard Peeperkorn, representante da agência na Cisjordânia e em Gaza.
“Sem alimentos nutritivos suficientes, água potável e acesso a cuidados de Saúde, uma geração inteira será permanentemente afetada”, acrescentou o oficial da OMS.
As crianças que não morrem de fome correm o risco de serem mortas pelos bombardeamentos israelitas. Segundo o último balanço das autoridades de Gaza, cujos números são considerados fiáveis pelas Nações Unidas, pelo menos 53.573 pessoas morreram desde 7 de outubro de 2023 – metade destas são mulheres e menores.
Nem mesmo os recém-nascidos escapam à ofensiva, com ataques constantes a maternidades e bloqueios ao acesso de ajuda humanitária às grávidas e aos seus filhos, denunciou uma comissão de inquérito da ONU. O relatório, divulgado em março, acusou Israel, com base no Direito Internacional, de promover “atos genocidas”.
Os explosivos de Telavive que não detonam contribuem para um fenómeno que o canal do Catar Aljazeera chama de “epidemia silenciosa”: a amputação de crianças. “Elas estão entediadas, estão a correr por aí, encontram algo curioso, brincam com isso e é o fim”, disse à agência France-Presse (AFP) Nicholas Orr, ex-desminador militar britânico.
Exemplo disso mesmo é Ahmed Azzam, de 15 anos, que teve a perna amputada por causa de uma explosão que aconteceu após regressar ao local onde morava, em Rafah, depois de viver meses deslocado. “Estávamos a inspecionar os restos da nossa casa e havia um objeto suspeito nos escombros”, contou o jovem à AFP. “Eu não sabia que era explosivo, mas de repente detonou”, relatou a vítima.
A grande quantidade de crianças com lesões crónicas foi sintetizada pela fotografia do ano eleita pela organização World Press Photo. As lentes de Samar Abu Elouf captaram, para o jornal norte-americano “The New York Times”, Mahmoud Ajjour, um menino de nove anos que perdeu os dois braços e atualmente vive em Doha, no Catar, onde recebe tratamento.
O sofrimento não acaba para as crianças, com o Gabinete Central de Estatísticas da Palestina a reportar, no início de abril, que 39.384 perderam pelo menos um dos pais – com 17 mil destes a perderem ambos. “Estas crianças vivem em condições trágicas, com muitas forçadas a refugiar-se em tendas ou casas destruídas, numa ausência quase total de assistência social e apoio psicológico”, publicou a agência. “A Faixa de Gaza está a sofrer a maior crise de órfãos da história moderna”, alertou.
Escolas transformam-se em abrigos
O futuro não é promissor, com o sistema educacional praticamente paralisado – ou por ataques, ou porque as escolas tiverem que se tornar abrigos para deslocados internos. Segundo o último relatório do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), 72% dos edifícios escolares foram atingidos diretamente e 95% foram danificados por ataques – necessitando de uma reconstrução total ou de um grande trabalho de reabilitação das instalações. Cerca de 62% das instituições de ensino estão a servir de abrigo.
Tais escolas atingidas ou danificadas atendiam 547 mil estudantes e eram o local de trabalho de mais de 20.500 professores antes de outubro de 2023. Segundo o OCHA, isso representa por volta de 88% da população estudantil e docente da Faixa de Gaza.
“As escolas nunca deveriam estar na linha da frente da guerra e as crianças nunca deveriam ser atacadas indiscriminadamente enquanto procuram abrigo”, afirmou a diretora-executiva do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Catherine Russell, em novembro. “Os horrores a que assistimos em Gaza estão a abrir um precedente sombrio para a humanidade, com crianças a serem atingidas por bombas em números recorde enquanto procuram segurança dentro das salas de aula. O trauma e a perda tornaram-se a sua rotina diária”, lamentou.