A explosão, seguida de incêndio, na central nuclear de Zaporizhzhia, na Ucrânia, deixou o Mundo em sobressalto. O perigo atómico instilado pela invasão russa da Ucrânia é real, apesar da resistência atual das centrais, que aguentam o impacto de um avião. Mas a tecnologia que protege as mais modernas infraestruturas também cria bombas mais potentes, capazes de destruir o que é construído para ser indestrutível.
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Luís Neves, professor catedrático da Universidade de Coimbra, e Carlos Varandas, catedrático do Instituto Superior Técnico, de Lisboa, são membros da Comunidade Europeia da Energia Atómica, o Euratom. Mas os dois especialistas têm têm visões diferentes sobre as possíveis consequências do ataque a Zaporizhzhia, que segundo a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) teve mão russa, apesar de Moscovo acusar os ucranianos de sabotarem a própria instalação nuclear.
"Não tendo sido atingido o reator, à partida é um incidente sem relevância", considerou Luís Neves. Segundo o diretor-geral da AIEA, Rafael Mariano Grossi, o "incêndio foi causado por um projétil" russo que atingiu um edifício administrativo a cerca de um quilómetro do reator número quatro, o único dos seis daquela infraestrutura em funcionamento.
As chamas, que deflagraram cerca das 2 da manhã, hora portuguesa, foram extintas por volta das 6.20 horas, e causaram dois feridos. "Os sistemas de segurança dos reatores da central não foram afetados", disse Grossi. "Não houve fuga de material radioativo", acrescentou o diretor-geral da AIEA, sublinhando que "os medidores de radiação estão funcionais", não tendo sido detetadas alterações dos níveis de radioatividade.
"O nível de proteção é muito elevado. Não é um incêndio no exterior que vai danificar o reator", comentou Luís Neves. "Se a bomba ou o míssil caísse um bocado ao lado, num dos reatores, haveria um desastre nuclear de grande escala", contrapôs Carlos Varandas.
Tendo em conta relatos de especialistas norte-americanos a que teve acesso, Luís Neves acredita que a central nuclear ucraniana já tem uma estrutura defensiva capaz de aguentar um ataque direcionado aos reatores. "Está protegida tanto para impactos externos como de eventuais problemas internos, decorrentes, por exemplo, de um corte de energia", disse.
Um quebra de fornecimento de eletricidade poderia desativar os sistemas de arrefecimento, que, numa eventual falha dos sistemas de retaguarda, normalmente geradores a gasóleo, poderia levar à perda de controlo dos reatores e daí a um acidente grave. Além disso, há o "perigo das piscinas nucleares", refere Carlos Varandas, preocupado com os locais onde é depositado o urânio usado para a fusão nuclear que cria a energia. Resíduos altamente radioativos guardados nos complexos nucleares, que, não tendo o nível de proteção dos reatores, poderiam causar um desastre radioativo se fossem atingidos por um projétil.
Ambos concordam que as centrais nucleares atuais estão preparadas para resistir a impactos elevados, como o de um avião, como o ataque que destruiu as Torres Gémeas, em Nova Iorque, em 2001. "As infraestruturas são sempre pensadas para resistir impactos extremos, mas não podem prever tudo. Fukushima, no Japão, foi projetada para aguentar ondas de 15 metros mas foi atingida por ondas de 20 e foi o desastre que se viu", recordou Carlos Varandas.
"É a primeira vez na História que alguém ataca uma central nuclear"
O desenvolvimento tecnológico que eleva os níveis de segurança também é mãe de máquinas de matar mais potentes. "A capacidade bélica atual é extremamente elevada e acho que nenhuma central nuclear do mundo está preparado para o impacto de um míssil disparado com extrema precisão", disse Carlos Varandas. "No limite é sempre possível lançar uma bomba com uma capacidade explosiva de tal forma que destrua uma central", concordou Luís Neves. "Mas aí tem de ser um ato deliberado, não um acidente de guerra. E seria preciso uma bomba que não está ao alcance de qualquer país", acrescenta o professor da UC.
"O importante aqui é saber quais as ideias dos dois contendores", argumenta Carlos Varandas, escaldado da contrainformação que medra desde o início do conflito. "Os russos podem pretender assustar as pessoas. É a primeira vez na História que alguém ataca uma central nuclear", disse aquele professor do Técnico. "Isto serve para mostrar que quando falam de nuclear, podem estar dispostos a lançar ogivas nucleares", acrescentou.
Por outro lado, pode haver objetivos estratégicos. "A central fica muito perto da Crimeia, que deve ter problemas energéticos, e dominar Zaporizhzhia seria fundamental para o fornecimento de energia", disse Carlos Varandas. "Outra razão pode ser querer fazer um apagão na Ucrânia", acrescentou, lembrando que esta é a maior central da Europa, responsável por cerca de um quinto da produção elétrica daquele país, em que metade das necessidades energéticas é satisfeita pela energia nuclear.
"Do ponto de vista de segurança para todos, seria muito interessante que a Ucrânia pudesse desligar as centrais nucleares que estão em operação", advogou Luís Neves. "Continuaria a haver riscos, mas mais improváveis, só em caso de um ataque muito direcionado", explicou.
O desejável, e desejado por quase toda a população mundial, era um cessar-fogo. Enquanto tal não for possível, Luís Neves defende que deveria ser criada "uma zona livre de combate em volta das centrais nucleares". Uma ideia sublinhada por Carlos Varandas, que considera impensável haver guerra nas imediações de instalações tão sensíveis.
Associações como a Greenpeace Internacional ou a Agência Internacional de Energia Atómica têm dito que "não há qualquer sentido em ter um conflito desta natureza próximo de uma instalação" como a central nuclear de Zaporizhzhia, recordou, à TSF, Francisco Ferreira, da associação ambientalista ZERO. O risco é demasiado elevado. E já dizia Einstein: "Só conheço duas coisas infinitas. O universo e a estupidez humana. E do universo não tenho a certeza."