
Tulipas amarelas e cravos vermelhos são a última homenagem aos que morrem
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Mykolaiv é uma cidade cada vez mais deserta. Nas últimas horas, quase 20 mil pessoas partiram. Os bombardeamentos russos aliados à falta de água fazem temer o pior.
No mercado das flores, Konstantin, um homem de 36 anos, compra rosas para o aniversário da mulher. "É uma exceção", assegura a vendedora. "Agora, pouco mais vendemos do que tulipas amarelas e flores azuis. Mas metade das vendas são cravos vermelhos, para os funerais", conta Valentina, que insiste em manter aberto o negócio de há 35 anos. "Temos de levar um pouco de alegria a cada casa", diz.
Tulipas azuis e amarelas e cravos vermelhos foram também as flores que, juntamente com a bandeira do Batalhão Azov, cobriram o caixão do filho de Elena Lyutova, uma filóloga de 64 anos que viu o filho morrer no ataque ao edifício da administração central de Mykolaiv no mês passado. "Fui sangrada. É como se a primavera tivesse fugido à minha frente. O céu ficou muito azul. Mas agora todos estão sozinhos. Parece-me que não voltei da batalha", diz a mulher.
Elena conta que a guerra começou em 2015. "Aconteceu uma coisa terrível: o meu filho partiu para o Donbass. Foi às escondidas, em silêncio. Mas mesmo depois de alguns anos, não consigo entender como é que tudo pode ter acontecido", conta.
Quando a invasão russa começou, Vladislav Lyutov decidiu regressar a Mykolaiv e alistar-se nas forças de defesa territorial da cidade. Os dois nasceram na Crimeia, a mãe em Sebastopol e o filho na cidade de Feodosia. A língua tem sido apontada como um dos fatores de divisão na sociedade ucraniana.
"Tudo em vão"
Elena é professora de Língua e Literatura Russas: "Há 40 anos que ensino a bondade, a justiça, ensino a amar minha pátria. Tudo em vão. Como não cair no desespero ao ver o que nos está a acontecer em casa? Deus nos abençoe por falarmos russo. Não é pecado. É uma virtude. Saber inglês, russo, ucraniano, chinês, é maravilhoso".
Quando morreu, o filho de Elena estava de serviço no 4.º andar, onde ficava o gabinete do governador Vitaly Kim e que foi atingido por um míssil russo. "A guerra é ilógica. Deixou a mulher e um filho. Conseguiu convencê-los a saírem de Mykolaiv. Sabia que tínhamos um trabalho muito difícil para defender a nossa cidade", conta.
Vladislav morreu um mês após completar 46 anos. A mulher e o filho regressaram a Mykolaiv para assistir ao funeral e espalhar as cinzas no rio Inhul. "Espero que regressem, ou então que mergulhem fundo na Europa. Talvez para Portugal, "um país com palavras antigas". Apesar de não entender algumas das posições do filho, a mãe não esconde o orgulho pela coragem de Vladislav. "Patria o muerte", atira com sotaque.
O sol pouco tem brilhado por estes dias em Mykolaiv, mas uma vendedora ambulante assegura ter a primavera pendurada na parede. "Estão a ver aqui? Os lilases a florescer, as peónias também. Melhora-nos a nós e aos outros", afirma.
