A primeira palestiniana a competir ao título de Miss Universo subirá ao palco no auge de um dos períodos mais sombrios da História de um povo que não conhece a paz há décadas, mas determinada a mostrar que a Palestina existe além de notícias sobre guerra e fome.
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"Somos mais do que a nossa luta e a nossa dor", disse Nadeen Ayoub, em entrevista à agência de notícias France-Presse (AFP), no Dubai, onde se prepara para hastear a bandeira do seu país no concurso, que terá lugar na Tailândia, em novembro. "Neste momento, o nosso povo precisa de uma voz e não queremos que a nossa identidade seja apagada", adiantou, há alguns dias, numa altura em que passam quase dois anos desde o início da escalada da ofensiva israelita em Gaza, que matou, incapacitou e deixou à fome dezenas de milhares de palestinianos no enclave tomado pela destruição generalizada.
Com Israel a intensificar os ataques, condenados várias vezes pela Organização das Nações Unidas e por todas as principais instituições políticas e humanitárias internacionais, Nadeen Ayoub quer mostrar a herança rica e a beleza da sua terra-natal, para humanizar um povo há muito reduzido ao seu sofrimento, defende. "As crianças querem viver, as mulheres têm sonhos e aspirações", disse a Miss Palestina, que, na entrevista à AFP, se apresentou com longo cabelo castanho-escuro solto, maquilhagem e um kimono clássico e comprido, preto com um pormenor vermelho, a completar um visual sóbrio.º
Foto: Fadel Senna/AFP
Nascida na Cisjordânia ocupada por Israel, onde cresceu, com passagens pelos Estados Unidos e Canadá, Nadeen Ayoub vive atualmente entre Ramallah, na Cisjordânia, o Amã e o Dubai, onde fundou uma organização que se dedica a temas como a sustentabilidade e inteligência artificial, aplicados a criadores de conteúdo digital. Formada em literatura britânica e psicologia, ensinou e trabalhou em várias organizações não-governamentais nos territórios ocupados.
Dificuldades em avançar com o concurso
"Os meus pais são ambos académicos e sempre me disseram para me focar nos estudos", confidenciou. Mas depois de desfilar num espetáculo de moda em Itália, Nadeen viu as portas da indústria a abrirem-se e, encorajada a competir em concursos de beleza, acabou por replicar um modelo existente em todo o Mundo. "Algo tão simples como ter uma organização destas [da Miss Palestina] é difícil", começou por explicar. Parta da dificuldade deve-se ao facto de as palestinianas estarem divididas entre a Cisjordânia ocupada (que inclui Jerusalém Oriental, anexada por Israel) e Gaza, enquanto milhares de pessoas estão refugiadas no exterior.
Por essa razão, o primeiro concurso de Miss Palestina, em 2022, foi realizado online de forma a permitir a participação de mulheres palestinianas espalhadas pelos territórios palestinianos e no estrangeiro. Como primeira vencedora do título, Ayoub trabalhou nas atividades filantrópicas da organização e competiu no Miss Terra, um concurso com foco ambiental, nesse mesmo ano. Mas desde que a guerra em Gaza eclodiu, em outubro de 2023, desencadeada por um ataque do Hamas a Israel que resultou na morte de 1219 pessoas, a maioria civis, Nadeen não participou em mais nenhum concurso de beleza.
Foto: Direitos reservados
"Devemos estar presentes em todos os palcos internacionais"
A ofensiva retaliatória de Israel matou pelo menos 64.756 palestinianos, também a maioria civis, de acordo com dados do Ministério da Saúde em Gaza, que as Nações Unidas consideram confiáveis. Ayoub disse que aproveitaria qualquer oportunidade para se manifestar em nome de seu povo. "Devemos estar presentes em todos os palcos internacionais. Devemos aproveitar todas as oportunidades que temos de falar sobre a Palestina, de mostrar a Palestina", disse.
Embora reconhecido pela maioria dos países do Mundo, algumas nações não reconhecem o Estado palestiniano - Portugal admite reconhecer mas ainda não concretizou -, tornando a representação no cenário mundial um ato de desafio para pessoas como Nadeen Ayoub.
"A Palestina é um país, é uma nação, eu irei representar um país de verdade", asseverou, num momento em que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, dá sinais ainda mais claros de se opôr à solução de dois Estados. "Não haverá Estado palestiniano", reiterou esta semana.