"Não vou esquecer nunca", diz familiar de vítima de acidente com mais de 70 mortos em Compostela
Anestesiados, os familiares das dezenas de vítimas do descarrilamento do comboio de alta velocidade, em Santiago de Compostela, vagueavam dentro e fora do Hospital Universitário da cidade. Com olhos muito abertos, de sono e pavor, sofridos, mas muito gratos por ali estarem à espera de notícias dos vivos. Dos sobreviventes.
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António cruza a porta envidraçada do Hospital Universitário de Santiago de Compostela e acende um cigarro, o primeiro desde que localizou a namorada e a acompanhou ali para ser tratada. "Viva, menos mal que está viva", repete, passo nervoso, a marcar o ritmo do cigarro tragado entre as palavras.
A mulher é uma das sobreviventes do descarrilamento de comboio que causou pelo menos 77 mortos e quase duas centenas de feridos, quarta-feira ao início da noite, em Santiago de Compostela, na Galiza.
A namorada de António vinha de Madrid para as festas de Santiago, para matar as saudades da relação à distância, ela em Madrid, ele na Corunha. "Tantas vezes lhe disse para que saísse em Ourense para vir de carro com o meu cunhado. Mas insistiu que viria de comboio", explicou.
António "voou" de A Corunha a Santiago sem saber se o amor que a distância conservara resistira à amálgama de ferro e fogo em que se transformou o comboio que fazia, quarta-feira, a ligação entre Madrid e Ferrol. Ali estava no primeiro cigarro dos muitos que ainda fumaria até que chegasse a família da namorada. "Está viva", repetia, apenas a recuperar de uma operação às costas.
Durante a madrugada desta quinta-feira, só os familiares fumadores assomavam à porta do hospital. Só esses se expunham, forçados pelo vício, aos olhares dos que, de fora, nada sofreram ou temeram.
"É algo que não vou esquecer nunca", conta José Frade, ao JN. A irmã seguia no comboio, com uma amiga, sem que os pais soubessem que se tinha posto a caminho das festas da cidade. O descarrilamento precipitou a chamada para os pais e tomada de consciência de que a vida acontece, mesmo quando escondida.
À hora que o JN falou com José Frade, madrugada em Espanha, apenas estava por saber como recuperaria a amiga da irmã, em mau estado para lá da porta envidraçada. A irmã estava fora de perigo, a salvo.
Muitos familiares vagueavam, mudos, resistentes em partilhar a dor. Abraços, lágrimas e incertezas na espera. À porta do hospital, os taxistas tinham, todos, os rádios sintonizados nos canais que traziam ainda mais más notícias.
Ouviu-se, das ondas da rádio, que estavam a levantar a carruagem que se desprendeu, à força do embate, do comboio. Havia mais cadáveres, pelo menos 10, diziam na rádio, sons duros abafados pelo clamor que ia crescendo entre aqueles, que à porta do hospital, ainda não sabiam dos seus, se estavam vivos ou mortos os familiares que procuravam.
A poucos quilómetros do hospital, muitos outros choravam os seus, já identificados e dados como mortos, no pavilhão multiusos, o centro de operações das equipas forenses, uma morgue improvisada.
Pela internet e pela rádio chegaram, durante a noite, atualizações das operações de resgate e limpeza da área do acidente.