"Nem daqui a 100 anos" se esquece: crianças de Gaza com traumas difíceis de sarar
Oito em cada dez escolas de Gaza estão danificadas ou destruídas, segundo a Unicef. Mas são os traumas profundos causados pela guerra a cerca de 1,2 milhões de crianças do território que preocupam os especialistas.
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A destruição em Gaza é dramaticamente visível após quase seis meses da ofensiva militar israelita contra o Hamas, que não tem poupado a população palestiniana nem as infraestruturas civis. Oito em cada dez escolas estão danificadas ou destruídas, segundo o mais recente alerta da Unicef, mas são os danos psicológicos causados pela guerra a cerca de 1,2 milhões de crianças da Faixa de Gaza que mais preocupam os especialistas.
"Deixei todos os meus livros, pensando que não demoraria muito tempo a regressar, mas isso não aconteceu". O relato é de Majd Halawa, jovem de 16 anos, sobre o dia em que o exército israelita deu três minutos para ele a sua família saírem de casa, na cidade de Gaza, duas semanas após o início da guerra. Viu a sua escola e a sua casa serem destruídas e o sonho em ser advogado ficou em suspenso.
"Para se poder aprender, é preciso estar num espaço seguro. Neste momento, a maioria das crianças em Gaza tem o cérebro a funcionar sob trauma", disse à agência AFP a pedopsiquiatra Audrey McMahon, da organização Médicos Sem Fronteiras.
Além do trauma, as crianças mais pequenas podem desenvolver deficiências cognitivas ao longo da vida devido à desnutrição, enquanto os adolescentes são susceptíveis de sentir raiva pela injustiça que sofreram, explica a pedopsiquiatra. "Os desafios que terão de enfrentar são imensos e levarão muito tempo a sarar".
"Ninguém consegue ultrapassar as memórias do que aconteceu, nem daqui a 100 anos", aponta Majd Halawa, cuja família já conseguiu levá-lo para o Canadá.
David Skinner, da Save The Children, acrescenta que a reconstrução das "escolas é extremamente complicada... mas é simples comparada com a perda de educação".
"O que muitas vezes se perde na cobertura de Gaza é que esta é uma catástrofe para as crianças. São crianças enlutadas, que perderam pessoas, que estão doentes e malnutridas", sublinha.
Serão 620 mil as crianças em Gaza que não frequentam a escola, segundo as estimativas do Fundo das Nações Unidas para a Infância.
O regresso das crianças às aulas e a reconstrução das escolas são apenas os primeiros passos, segundo David Skinner. O verdadeiro desafio será curar os jovens deslocados e traumatizados de Gaza para que possam aprender a aprender novamente.
"Sem precedentes"
Até à data, pelo menos 53 dos 563 edifícios escolares de Gaza foram destruídos, de acordo com a Unicef. Mais de oito em cada 10 escolas foram danificadas e 67% foram atingidas diretamente, de acordo com um relatório elaborado por agências de ajuda humanitária com base em imagens de satélite e relatórios no terreno.
"Esta é uma situação sem precedentes", garante Juliette Touma, da agência das Nações Unidas para os refugiados palestinianos (UNRWA), que ajuda a educar 300 mil crianças de Gaza. "Os colegas que estão aqui há mais tempo lembram-se de uma escola atingida" em conflitos anteriores, disse.
Na cidade de Rafah, no sul do país, para onde fugiu metade da população do território, foram montadas escolas improvisadas em tendas.
Numa das tendas, a AFP encontrou Hiba Halaweh a ensinar 30 crianças a ler as primeiras palavras. "As crianças estão contentes por voltarem ao trabalho", conta a professora, apontando a falta de recursos, como "manuais escolares e canetas".
O Ministério da Educação, dirigido pelo Hamas, planeia criar 25 mil escolas temporárias deste tipo para dar uma resposta mais imediata.
No início da guerra, as escolas pararam imediatamente as aulas e a maioria foi transformada em abrigos para as famílias que fugiam dos ataques aéreos israelitas.
Quase metade da população do território palestiniano tem menos de 18 anos e o seu sistema educativo já se encontrava em dificuldades após cinco guerras em 20 anos.