O padrão é este: uma personalidade chinesa faz um comentário crítico sobre o Governo do país ou lança suspeitas sobre uma figura importante do Partido Comunista Chinês e no, rescaldo das acusações, desaparece dos radares públicos. Do lado dos acusados, sobra o silêncio.
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O caso mais recente de aparente censura chinesa à exposição dos podres internos a chamar a atenção internacional, nas vésperas dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, é o de Peng Shuai. A tenista medalhada de 35 anos deixou de ser vista depois de, a 2 de novembro, ter feito uma publicação no Weibo (o Twitter chinês) em que acusava um ex-primeiro-ministro de a ter abusado sexualmente há três anos.
A Zhang Gaoli, no centro das suspeitas, nada aconteceu: nenhuma investigação judicial foi aberta nem terá havido um inquérito do partido. Mas, para Peng Shuai, as consequências da denúncia foram várias: a publicação foi apagada, as reações bloqueadas (incluindo algumas palavras-chave, como ténis), várias referências à tenista dissiparam-se da Internet e Peng desvaneceu-se do olhar do público durante semanas, com a ONU a exigir provas de vida.
Os fãs de Peng Shuai têm usado metáforas, abreviaturas e jogos de palavras para se referirem à tenista na Internet, tentando escapar ao batalhão de censores.
Apesar de, segundo vídeos publicados por vários órgãos de comunicação chineses, a tenista ter surgido no fim do mês num restaurante e num torneio de ténis em Pequim, e de já ter falado por videoconferência com o presidente do Comité Olímpico Internacional, a poeira levantada ainda não assentou. A WTA - que recebeu um e-mail supostamente enviado pela atleta em que esta desmentia o desaparecimento e a agressão sexual antes denunciada - pôs em causa a veracidade da mensagem, dizendo duvidar que a tenista "esteja livre, segura e não sujeita a censura, coação e intimidação".
"Não vejo como é que os nossos atletas podem competir, enquanto Peng não puder comunicar livremente e for pressionada a contradizer as alegações de abuso sexual", disse na quarta-feira o presidente da associação, Steve Simon, que suspendeu todos os torneios no país.
Cultura sob rédea curta
Em agosto, como parte de uma intervenção que deixou a indústria do entretenimento sob rédea curta, controlando a influência da cultura popular no cidadão comum, a pegada digital de Zhao Wei, prestigiada atriz chinesa com prémios ganhos e milhares de seguidores nas redes sociais, também se evaporou.
No mesmo mês em que o Governo proibiu a venda de merchandising de famosos, concursos de talentos e rankings de popularidade online, os filmes que Wei protagonizou ao longo das últimas décadas foram bloqueados, o nome da atriz apagado dos créditos, as contas nas redes sociais eliminadas e o clube de fãs banido.
De acordo com o que vários especialistas em política chinesa disseram na altura à imprensa internacional, o controlo do setor, tornado campo de batalha ideológico pelo regime do presidente Xi Jinping, é feito em nome da prosperidade comum: personalidades influentes devem ser exemplos de virtude, promovendo a ordem pública e os bons costumes, e não alimentar estilos de vida extravagantes considerados sinal de decadência moral. "Wei é o exemplo máximo de tudo o que o Partido Comunista acredita estar errado com a cultura das celebridades. Isto é uma demonstração de que ninguém, por mais rico ou popular que seja, é demasiado grande para ser perseguido", explicou Stanley Rosen, da Universidade da Califórnia, ao "The Wall Street Journal".
Sem sairmos do universo artístico, embora recuando no tempo, encontramos mais um exemplo que fez correr tinta. O artista plástico e dissidente chinês Ai Weiwei, cujo ativismo sob a forma de arte o tornou num dos maiores críticos de Pequim, deu-se a conhecer pelo recorrente envolvimento em questões incómodas para as autoridades chinesas. No início da década passada, começou a fazer uma série de denúncias num blogue seguido massivamente e, à medida que ganhava notoriedade cá fora, ia perdendo liberdades lá dentro.
Diz que foi apagado da Internet, que passou a ser vigiado diariamente e que o seu novo estúdio foi demolido porque sim. Em 2011 (ainda antes da era Xi Jinping), esteve preso 81 dias numa cela de 26 metros quadrados "por suspeita de crimes económicos", tendo acabado, após tornar-se numa causa mundial, por ser libertado graças à "boa atitude em confessar os seus crimes, bem como por uma doença crónica", justificou então o Governo. Acusado de fuga ao fisco, ficou em prisão domiciliária até 2015, quando abandonou o país. Hoje, com 64 anos, vive em Portugal e não pensa em voltar.
Dinheiro não significa poder
Em finais de 2020 e inícios deste ano, depois de o multimilionário Jack Ma, fundador do gigante do comércio eletrónico chinês Alibaba, ter feito um discurso crítico sobre a legislação do país em matéria financeira e a gestão dos bancos tradicionais como se fossem "lojas de penhores", o seu paradeiro passou a incerto.
As palavras desencadearam o bloqueio da entrada na bolsa da empresa de serviços financeiros digitais Ant Group, da qual o magnata é o maior acionista: o Governo cancelou a operação, que ia ser a maior oferta pública inicial da História, quando faltavam só 48 horas. Como um mal nunca vem só, o regulador de mercado da China abriu uma investigação contra a Alibaba, acusando-a de práticas monopolistas, o que levou o outrora homem mais rico do país a perder milhares de milhões de euros.
Habituado aos holofotes, Ma não fez qualquer aparição pública nem comentário nas redes sociais durante três meses, além de ter sido substituído como jurado no programa televisivo "Heróis de Negócios em África" (uma espécie de "Shark Tank"). Saiu pela primeira vez do país em outubro, numa viagem para Maiorca, em Espanha, que foi notícia em todo o mundo.
Estratégia anticorrupção
Desde que se tornou no principal líder da China, em 2012, Xi Jinping tem vindo a comandar uma implacável campanha anticorrupção que já puniu mais de 1 milhão de oficiais, por corrupção e transgressões disciplinares. Mais de 170 ministros e vice-ministros foram demitidos e muitos deles presos e que é vista como o maior expurgo interno desde Mao Zedong (1893-1976).
O Governo exige aos dirigentes do partido que "sejam capazes de passar nos mais difíceis testes" de moral política, profissional e familiar, o que pode explicar aquela que tem sido a única resposta às mais variadas acusações feitas a antigos líderes do regime, tanto de corrupção como de casos extraconjugais: o silêncio.