Trabalhadores portugueses sentem a perda da rainha, mas pouco. Real dor de cabeça é o aumento brutal de preços e os entraves à imigração.
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Se um galheteiro com azeite e vinagre sobre as mesas não anunciasse logo ao que vêm os clientes, o peixe assado com batata cozida e a espetada com lulas e camarões grelhados que saem da cozinha deitariam por terra qualquer dúvida. Ícone da gastronomia portuguesa em Londres, há mais de 20 anos que o "Cantinho de Portugal" dá tempero luso a quem chega. "Vêm sobretudo portugueses, mas ingleses também. Eles cá não sabem o que é sal", orgulha-se Carla Ribeiro, gerente do restaurante, que fica numa zona do sul de Londres à qual a forte presença de comunidades portuguesas dá o nome de "Little Portugal" ("Pequeno Portugal"). A viver em Inglaterra há 34 anos, quase tantos como tem de vida, desde os tempos da escola que Carla se habituou à presença constante de Isabel II, daí que a perda lhe custe "um bocadinho". Mas custar a sério só o Brexit.
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"O país está a mudar drasticamente, está a ser um choque. A comunidade inglesa está também contra, porque o que foi prometido não está a acontecer. Na hotelaria, temos dificuldade acrescida em arranjar pessoas. A monarquia devia intervir na política e nos entraves à imigração", diz. Ao lado, uma cliente habitual, também imigrante, ri-se com descrença. A família real não é propriamente conhecida por ser a mais calorosa com quem não é nascido no reino, explica, mas a conversa fica por aí porque mexe com feridas ainda abertas.
Novo rei
Na Wilcox Road, uma das ruas mais portuguesas de todo o país, onde há negócios nortenhos, sulistas e madeirenses, Óscar Carvalho, dono da Ourivesaria Portugal, também duvida de que a chegada do novo rei, embora mais expansivo do que a mãe na defesa do acolhimento de imigrantes, vá agitar as águas. "A monarquia é um símbolo, não tem influência nas decisões políticas, por isso não acho que vá ter grande impacto no futuro", diz o algarvio, em Londres desde 2005, que, desde a burocracia excessiva ao "aumento drástico dos custos", só vê efeitos negativos no Brexit.
No café mesmo ao lado, onde o matutino da TVI no televisor e os compais de pêssego no frigorífico apontam a bússola para terras lusitanas, Martim, funcionário do "Madeira Próspero", tem o mesmo discurso: a mudança de cara do Estado não deve mudar nada, a do Governo menos ainda e a saída da União Europeia não trouxe nada de bom.
A opinião é unânime até ao fim da rua: à porta do "Rose Deli" - o nome não é o mais típico, mas uma escultura de Nossa Senhora de Fátima e os rissóis e chouriços na montra do balcão não enganam sobre a origem -, a proprietária, Rosário, diz que os entraves ao recrutamento de pessoal estrangeiro e o aumento de preços e das taxas de produtos importados têm minado o negócio.
Carlos, marido da dona e funcionário do restaurante-café-mercearia - bem à moda portuguesa -, sabe das dificuldades, mas não se queixa: "Sempre vivi bem aqui e sempre fui bem tratado". Talvez por isso nem hesite em ir ao velório público da rainha, mesmo sabendo que vai ser um vê-se-te-avias. "Vão ser milhares. Quando cá cheguei a Inglaterra, morreu a princesa Diana. Nunca na vida vi tanta gente a chorar. Só em Alvalade".
Português condecorado pela rainha
Também na Wilcox Road, o brigantino Pedro Xavier tem um escritório onde faz consultoria e serviços de contabilidade. Mas foi o trabalho que desenvolve junto da Polícia londrina para a proteção da família real que lhe valeu, há alguns anos, uma condecoração da rainha no Palácio de Buckingham.
"A morte de Isabel II tem um simbolismo grande. Tive o privilégio de estar com ela várias vezes e de receber uma medalha", conta. À antiga monarca, só tem por isso a agradecer e, ao novo rei, deseja que os fantasmas de polémicas antigas não regressem, para que possa exercer o reinado com a diplomacia e a contenção exigidas, não abandonando a intervenção política que o caracterizou como príncipe. De resto, numa altura de transição política profunda que o país está a atravessar, Pedro não espera alterações à linha que tem vindo a ser seguida, nem através do novo chefe de Estado, nem através da nova chefe de Governo, que dará apenas "continuidade ao que o Partido Conservador tem vindo a fazer", defende.