O dia cheio de claridade na Polónia: Dmytro, Diogo e o Patinha vieram cá para os salvar
Vários grupos de portugueses chegam à Polónia. Descarregam mantimentos, enchem os carros de ucranianos e são uma lição a seguir.
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O que precisamos é do hálito das rosas, da respiração da hortelã, mas aquilo que entrou por ali adentro foi o bafo rude da estrondosa tempestade. Foi o que viu Natalyia, que tem duas meninas, a Sofyia e a Maryia, que moravam num prédio de nove andares em Sumy, última cidade da Ucrânia, ou primeira, depende de onde se tem o coração, antes da fronteira da terra de lama da Rússia ocidental: um vendaval de mísseis com o som de um furacão. Quem o relata é o tio Dmytro, luso-ucraniano que mora em Penafiel e agora está aqui à nossa frente no parque frio do grande Centro Expo de Varsóvia, Polónia, que acolhe a enxurrada de refugiados há duas semanas, a mais de mil quilómetros de onde aquilo começou.
Foi logo no primeiro dia da guerra, 24 de fevereiro, um dia demasiado noturno, e Sumy foi das primeiras cidades onde choveu a invasão. Natályia e as meninas estavam a dormir, era alta a madrugada, acordaram com o estrondo do prédio todo a ranger nos ossos e no betão. Antes de darem por si, num supetão já estavam na aldeia ao lado onde têm familiares. E enquanto o diabo progredia, elas passaram duas semanas tremidas na cave da casa dos parentes, encolhidas de olhos brancos na escuridão.
Dmytro conta que esteve sempre ao telefone com elas, que as tentava sossegar, que elas tinham que sair, sair já, ele só via a guerra a aumentar na televisão, mas não há sossego com tanta distância e estrépito pelo meio, e Dmytro pôs pés ao caminho a acelerar.
"Ainda bem que estava já perto, tinha um trabalho em Flensburg, na Alemanha, junto à fronteira com a Dinamarca, saí domingo à noite, cheguei lá um dia depois". Lá era Chernivtsi, junto ao bico ocidental das fronteiras da Moldávia e da Roménia para onde Natalyia e as pequeninas Sofyia e a Maryia tinham saído no primeiro corredor verde aberto na guerra que as pôs num autocarro de 800 quilómetros e estrada lacrimosa. Zarparam logo para Varsóvia, Polónia, e já estão cá.
Não salvou só as sobrinhas, Dmytro trouxe também Eugenia e os filhos dela Ivan e Elizaveta na carrinha, acabara de os conhecer, "venham, vamos, não têm que me pagar nada, temos é que sair já, já", disse o Dmytro, não se dirá a ninguém que eram sete na carrinha de cinco lugares dele.
Somos um povo do coração
"Ver a miséria e a tristeza destas pessoas emociona-me, como não?, mas quando vi aqui tantos portugueses até me arrepiei. Ainda estou arrepiado, olha" - e Marco Patinha quer mostrar os pelos eriçados do braço mas não mostra porque está demasiado frio e ele veste várias camisolas polares que não consegue arregaçar. É enfermeiro e motorista da Missão Humanitária da Maia Sorrisos de Esperança que ontem à tarde saiu de Varsóvia com um autocarro carregado - 53 pessoas, dois gatos espantados e um rato de estimação; nenhum ucraniano deixa jamais os seus animais para trás, nem na guerra - em direção a Portugal. A Missão vai conduzi-los toda a noite, três noites seguidas, na madrugada de sexta devem entrar na Maia a sorrir.
Estavam mesmo muitos portugueses, como disse o Patinha, pelo menos mais quatro missões de resgate, uma de Elvas, outra do Porto, outra de Lisboa, mais a de Penafiel. "Hoje só se ouve falar Português, hela!", diz o Patinha a olhar em redor. "Em 20 viaturas, dez eram portuguesas", continua a exclamar, "como é possível?!, vieram lá de tão longe!, somos o país europeu mais longe da Ucrânia!, somos!, somos mesmo um povo do cara***!", remata ele a sorrir escancarado, não faz mal, ninguém liga, aqui ninguém sabe que ele disse um palavrão saído do coração. E depois o Patinha esfuma-se no seu colete cor de laranja, é hiperativo, está sempre aqui e ali a ajudar alguém, não fala ponta de ucraniano, usa um gravador/tradutor, é cómico vê-lo a atuar, tem um coração do tamanho do couraçado de Grigory Potemkin.
E o Porto é uma nação
Os seis salvados por Dmytro tiveram que se partir em dois - já não havia lugar no autocarro da esperança da Maia, foi uma pena. Mas quando se fecha uma porta, abre-se logo outra melhor. É a porta da carrinha Mercedes de Diogo Pinto, 22 anos, olhos a faiscar de emoção. Ele chegou carregado de mantimentos de Gaia, veio ele e a namorada, a Márcia, mais o avô Zé Carlos, já descarregou as comidas, as fraldas, as papas, as roupas que veio dar. "Dzieki", "dzieki", disseram-lhe os polacos que estão a acolher a maioria dos 2,8 milhões de refugiados, "não tem nada que agradecer, é um prazer, é a nossa obrigação", disse o Diogo, que é "team leader" da frota rent-a-car da Drive on Holidays, empresa do patrão Ricardo Esteves com sede em Gaia. "Ele foi cinco estrelas, aprovou logo a ideia de virmos, cedeu a carrinha, deu dinheiro, doações, mobilizou mais gente, toda a gente a ajudar".
Três dos cinco lugares da Mercedes já estão preenchidos, são da Eugenia e dos filhos dela, sobram mais dois; a Natalyia, a Sofyia e a Maryia, que não se querem separar, devem seguir hoje para Portugal noutra carrinha que o Diogo vai desenrascar. "Senti logo uma revolta quando a guerra começou, tinha que fazer algo por aquela gente boa, fazer um donativo não chegava, era preciso mais e, olhe, cá estou". É grande, o Diogo, é maior do que o enorme cachecol que trouxe à frente no tablier, um cachecol felpudo com um dragão que diz que o Porto é uma nação.