O "flower power" de uma nação e uma alegoria de resistência, nas virtudes nutritivas e culinárias e nas extraordinárias propriedades fitossanitárias atribuídas a uma planta para a descontaminação nuclear dos solos de Tchernobyl.
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O mundo alarma-se com a subida galopante do preço dos combustíveis e de tudo o mais que lhe sucede na indústria agroalimentar, por via de uma especulação vegetal, a do girassol, que é também, para lá de todas as virtudes nutritivas e fitossanitárias da planta, uma alegoria da resistência ucraniana. Mais do que nunca, as flores amarelas são um símbolo político, contra os blindados russos.
Quando apareceu ao lado do marido, no Congresso, com um girassol estampado na máscara anticovid, a senhora Jill Biden, primeira dama dos Estados Unidos, só estava a internacionalizar um emblema da Ucrânia, o girassol, curiosamente chegado da América do Norte, no século XVII. É assim, de Washington a Paris, de Madrid a Berlim e por todo o mundo que alastra este símbolo da solidariedade com o povo ucraniano, cravado nos cabelos, gravado nas vestimentas ou graffitado nos muros.
O markting, tão ou mais político, também se apoderou do girassol ucraniano, sobretudo nas redes sociais, com a multiplicação de emojis e de "hashtags" alusivas à resistência ucraniana. Outro ato político: em Londres, Carlos e Camila depositaram um ramo de girassóis no altar da catedral católica ucraniana.
Propriedades terapêuticas
O "soniashnyk", como se lhe chama em ucraniano, não precisou, contudo, do mais recente fervor patriótico para ter sido adotado como flor nacional. Metade das exportações mundiais de girassol e de óleo de girassol sai dos campos da Ucrânia. Segundo o Departamento Ucraniano do Desenvolvimento agrícola, em 2021 o país cultivou 6,5 milhões de hectares.
Este mar amarelo é também um símbolo da Igreja Ortodoxa ucraniana, que foi quem mais fez para popularizar a planta, com a unção dos óleos, pela Quaresma. E assim também se vulgarizou um ingrediente indispensável à gastronomia ucraniana, como substituto da manteiga da gordura animal.
Além das propriedades nutritivas, às sementes de girassol são igualmente reconhecidos méritos terapêuticos variadíssimos - os ucranianos usam-nas em infusões para quase tudo (febres, diarreias, infeções pulmonares...) - e às raízes da planta atribuídas aptidões extraordinárias na descontaminação dos solos envenenados pelas radiações nucleares. Os cientistas garantem que foram as virtudes fitossanitárias da planta que ajudaram a despoluir os solos depois da catástrofe de Tchernobyl, ocorrida em 1986.
Raízes antimíssil
Dez anos depois, em 1996, os girassóis foram novamente carregados de abundante simbolismo, para assinalar o desarmamento e desnuclearização da Ucrânia. Nesse ano, em junho, o comando da base de mísseis de Pervomaysk, no sul do país, mandou plantar girassóis para celebrar o abandono do terceiro maior arsenal nuclear do mundo, herdado do colapso da União Soviética, em 1991.
Nesse antigo campo de mísseis nucleares SS-19, prontos a disparar contra os Estados Unidos, estavam soterradas 1900 ogivas, depois desmanteladas, pelo Memorado de Budapeste, assinado em 1994. Bizarria: em troca da renúncia nuclear, os países signatários, entre os quais a Rússia, comprometeram-se a respeitar a soberania e as fronteiras da Ucrânia.
As sementes do destino
O girassol está igualmente associado a um dos episódios mais marcantes da invasão da Ucrânia e que teve circulação viral nas redes sociais: em Genichesk, nos arredores de Kherson, uma corajosa octogenária foi filmada a abordar um nervoso soldado russo e a oferecer-lhe sementes. A legenda foi verbalizada pela própria: "Toma lá. Pelo menos, assim, quando morreres no nosso solo, haverá girassóis a crescer à tua volta".
Embora não se lhe associasse imediatamente, à audaciosa velhinha ucraniana logo se lembrou outro ucraniano, o judeu Simon Wiesenthal, sobrevivente do holocausto, caçador de nazis e autor de um livro ("The Sunflower", "A Flor do Sol") descritivo do internamento num campo de trabalho forçados, na Polónia, em 1942.
Ao passar todos os dias em frente a um cemitério militar, Wiesenthal observou e registou que em cada tomba de um soldado nazi crescia um girassol. Falta saber se a intrépida velhinha se referia a esta passagem literária. E se o soldado russo entendeu a fatalidade do destino.