XX Congresso do Partido Comunista reelege o secretário-geral e entroniza o "Novo Timoneiro" como presidente perpétuo do Império do Meio.
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Tudo fechado e isolado em volta do Grande Palácio do Povo e da Praça Tiananmen (Paz Celestial). E não é só por causa da política de covid-zero. É lá que vai decorrer, a partir deste domingo, o XX Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), para a reeleição do secretário-geral e para a entronização perpétua do mesmo Xi Jinping na liderança da China.
Aos 69 anos, Xi Jinping está na encruzilhada da História. E o regime faz a coreografia do momento, porque, muito mais do que decidir o que quer que seja, os 2296 delegados ao congresso do PCC validam a recondução do líder para um terceiro exercício de cinco anos. Uma mera formalidade, a que a supressão do limite constitucional de mandatos, aprovada em 2018, rasgou horizontes.
O "Novo Timoneiro" - como alguns, não sem desdém, ousam chamar-lhe lá na China, em alusão ao fundador da República Popular, Mao Tsé-Tung, que governou entre 1949 até à morte, em 1976 - habilita-se ao poder perpétuo, ilimitado e sem partilha. A questão que agora se coloca em Pequim é se, em 2032, aos 79 anos, Xi Jinping ainda se achará com vigor para mais um lustre ou mesmo uma década à frente dos destinos do país, ele que se sente investido na missão de realizar "O Sonho Chinês", de hegemonia regional e mundial.
Para já, o poder tem uma tramitação: o Congresso do PCC nomeará duas centenas de membros do Comité Central (uma espécie de parlamento do partido). Será, depois, este órgão que elegerá o Politburo, um grupo de 25 membros, incluindo o próprio Xi Jinping. O poder será ainda mais concentrado num grupo restrito, de sete elementos, todos homens e tendencialmente decanos do partido: trata-se do Comité Permanente do Politburo, cuja composição, sempre com Xi Jinping à cabeça, será anunciada entre quarta e quinta-feira.
Deste grupo não fará parte, com toda a evidência, outro veterano do partido: Jiang Zemin foi o presidente (entre 1993 e 2003) que travou as anteriores investidas pela supressão do limite constitucional de mandatos e ainda hoje, do alto dos seus 96 anos, é uma das poucas vozes, de um dos clãs da chamada tribo de Xangai, que ousam contestar Xi Jinping. O secretário-geral já tratou, entretanto, de colocar aliados em pontos-chave, nomeadamente o novo ministro da Segurança Pública, Wang Xiaohong, ou o líder do partido em Xangai, Li Qiang.
O aparelho do partido-Estado completa-se com a Comissão Militar Central (11 membros), que controla a tropa e as polícias, e pela Comissão Central de Controlo Disciplinar, a quem coube, nos últimos anos, julgar e condenar funcionários públicos corruptos (uma das bandeiras de Xi Jinping), em processos muitas vezes considerados como purgas políticas contra os adversários do regime.
É assim que o chefe do partido, do exército e do país se fortalecerá como líder mais poderoso desde Mao Tsé-Tung, quiçá ao ponto de poder superar a longevidade política do "Grande Timoneiro", o que também não deixaria de constituir uma certa desforra pessoal do rapaz de 15 anos que, um dia, foi condenado a trabalhos forçados na lavoura, porque o pai, amigo e correligionário de Mao, foi detido e julgado como traidor da Revolução Cultural.
Síndrome de Estocolmo em Xi
É desta reparação da memória familiar que também se concretizará um certo destino. "Para utilizar uma imagem fácil de perceber por um ocidental, podemos dizer que o subconsciente de Xi Jinping é o síndrome de Estocolmo, quando a pessoa raptada toma partido e até afeto pelo raptor. Podemos dizer que se tornou num pequeno Mao Tsé-Tung", observa Yu Jie, biógrafo não autorizado, exilado nos Estados Unidos.
Seja como for, "O Sonho Chinês" é tornar a China na primeira potência económica e militar em 2049, para festejar o centenário da República Popular. "Estamos a construir as novas rotas da seda, que devem cobrir todo o planeta, com rotas de comércio chinesas, para felicidade da humanidade", declara "Xi Dada", o "Tio Xi", patriota e nacionalista, omnipresente, popular e igualmente misterioso, como a máquina de propaganda promove o culto desta personalidade.
Manifestações, repressões, "desinformação"
Não lhe bastasse a guerra na Ucrânia, perante a qual se posiciona com toda a ambiguidade estratégica, Pequim vê-se rodeada pela tensão regional, designadamente entre as Coreias e com o Japão, e também com as dissidências internas, sociais, políticas e territoriais. Nada que a diplomacia de Xi Jinping não resolva, seja por que método for, incluindo os lícitos. Na província de Xinjiang, a China é acusada de reprimir a comunidade muçulmana uigure, ao ponto de organizações internacionais considerarem que se trata de um genocídio (um milhão de vítimas, segundo os relatórios ocidentais). "Tudo desinformação do Ocidente", diz Pequim, usando o mesmo argumento com que relativizou a repressão das manifestações em Hong Kong contra as limitações à democracia. É também do que se fala quando Xi Jinping posiciona a Armada à volta de Taiwan, ilha com soberania reconhecida internacionalmente, mas que Pequim considera como território nacional. Destas e doutras derivas antidemocráticas - como as restrições à liberdade de Imprensa e à sociedade civil ou a tecnologia de reconhecimento facial nas ruas - completa-se a imagem do Império do Meio que quer ser o centro do Mundo.
Dados
Rasto secular
Em 101 anos de vida, o PCC vai no vigésimo congresso, a mais alta instituição do partido, mas eminentemente simbólica. Tudo se aprova a montante.
Militância
O PCC tem 96,71 milhões de militantes, entre uma população de 1400 milhões de habitantes. O partido reúne, portanto, cerca de 7% dos chineses.
"Best-seller"
As biografias não autorizadas de Xi Jinping só estão à venda em Hong Kong e Macau, mas são os livros mais vendidos na China. "As reflexões de Xi Jinping", ensaio político e social assinado pelo próprio presidente, fazem parte dos currículos escolares.
Entrevista
Sacralização do líder e culto da personalidade
O que podemos aguardar do Congresso do PCC?
É a grande consagração política de Xi Jinping. Vai para o terceiro mandato consecutivo, o que é novo na história recente da China, até porque um líder anterior, Deng Xiaoping, o "Pequeno Timoneiro", que sentiu na pele os efeitos negativos do maoismo, num período de grandes tragédias, instituiu a limitação a dois mandatos, para que não voltasse a haver concentração de poderes num só homem. Agora vai ser a coroação de Xi Jinping. Prestes a fazer 70 anos, já tinha idade suficiente para se retirar e se cuidar, mas vai perpetuar-se no poder, não se sabe até quando.
Que balanço se pode fazer de dez anos de Xi Jinping?
Têm uma marca profundamente individual, de culto da personalidade, de sacralização do líder. Muito diferente da anterior, que tinha a marca do consenso. A liderança de Hu Jintao era mais consensual. Não lhe conhecíamos os traços de personalidade e tinha uma liderança diluída no coletivo. Já Xi Jinping tomou imediatamente todo o poder, em várias áreas, inclusivamente a militar, implementou um programa de combate à corrupção como nunca se tinha visto e aproveitou-se disso para afastar pessoas do Politburo e elites militares. E fica sempre esta nebulosa, porque nunca se sabe se houve por trás motivações políticas.
Onde está a fronteira entre Estado e partido?
O partido acima de tudo. Depois o Estado. O Estado controla a população e o partido controla o Estado. É uma organização suprema, que lidera tudo, mas tudo mesmo, todo o aparelho. Até costumo dizer que a China não tem um exército. Quem tem um exército é o partido. As estruturas militares estão dentro da estrutura do partido e asseguram a supremacia do partido. É o sistema do partido-Estado.
A China é ou pretende ser hegemónica?
Acho que não há dúvidas sobre isso. Não direi hegemonia, porque pode ser excessivo, mas há uma estratégia um bocadinho diferente daquela a que estamos habituados, nomeadamente quando os Estados Unidos também procuram esse espaço de poder. A China é muito mais subtil. Utiliza meios económicos, planta pessoas em cargos importantes, para servir a pátria. Não tem postura confrontacional. Aliás, a estratégia tradicional chinesa diz isso mesmo: vencer sem lutar.