Há nove anos, Odete falava-nos dos sapatos. Hoje não se lembra do armário que ficou nos escombros. Se calhar, na altura, os sapatos foram aquela "coisa simples e pequena" em que se focou para não olhar o importante. Sobreviveu. "You know, a vida continua".
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Tinha 33 anos esta luso-americana com origens na recuada Oura, em Vidago. Uma vida sorridente, uma excelente colocação no sector financeiro da Autoridade Portuária de New Jersey e Nova Iorque, uma vista de sonho. "Aquilo era um sítio tão bonito para se trabalhar", dizia Odete Cunha, em 2002, na Park Avenue onde renasceram os escritórios. Depois, fugiu. Literalmente.
"Não quero lá estar todos os dias". Lá é a Manhattan onde sempre trabalhara. De repente, sentia--se "presa". "Não quero estar num sítio de onde não possa sair". Diz ela, que até conseguiu sair, naquele dia que viu lindo antes de o comboio que a levava de New Jersey se enfiar nos túneis. Saiu, seis andares a subir até ao rés-do-chão, um dia demasiado feio lá fora, um cheiro intenso e bombas feitas de gente, tantas, à volta da fuga. Saiu, quilómetros a subir até à segurança de Time Square, 42 ruas acima do inferno, frente às notícias que corriam em forma de néon. Sentou-se no chão.
Chegou a estar na lista dos mortos
Hoje, não repete estes passos. Já os tinha contado há nove anos. O "tempo" não dá escolha, obriga a seguir em frente. "Não sei por que é que falei nos sapatos". Por ser uma "coisa simples e pequena", talvez, que lhe desviavam a atenção dos que não saíram, como ela. Ela que chegou a estar na lista dos mortos, da Port Authority, porque ia atrasada naquela manhã e ninguém lhe pusera a vista em cima.
Odete não mudou. Eléctrica, riso fácil. Mas, agora, pede constante desculpa pelo Português de quem nasceu na terra das oportunidades. Não por chorar, como então. Tem uma forma pausada de ver a vida. "Aprendi isso. Se alguém me diz alguma coisa de que não gosto, não respondo logo. Espero um bocado e a resposta é diferente". Naquela terça-feira de 2001, só queria desatar aos pontapés a quem falava em paz, entre os fugitivos cobertos de pó. Põe as guerras que se seguiram neste prisma. Se calhar...
Longe da opressão
Fugiu em 2003. A Port Authority gere os transportes marítimos, os túneis, os aeroportos. Colocou-a no de Newark, "de onde saiu o avião da United Airlines", o 93 que caiu na Pensilvânia. Mas está perto de casa, à distância de uma viagem de carro. "Quando a gente está no nosso carro, tem mais controlo" da situação. "Ponho-me no carro. Não há pontes, não há túneis, não há comboios".
Dez anos sararam o choque de perder colegas. Os outros, os que estiveram lá, são como uma família de encontros esporádicos. Afinal, chora. Chorou anteontem de manhã, quando recebeu fotos do colega paraplégico que seis colegas trouxeram 69 andares abaixo. "É surpreendente o que as pessoas conseguem fazer".