Oksana recebe na sua casa de Vila Chã, em Vila do Conde, quem foge da guerra na Ucrânia. Já chegaram a ser mais de 20. Olga, Alla e Inna chegaram com os filhos à procura de paz. Mas já há dificuldades para ajudar tantas pessoas. A Câmara de Vila do Conde pediu mesmo o apoio da Associação Desportiva de Árvore Forças Segurança Unidas, que entrou em campo para oferecer alimentos.
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Flutua alegria pela casa cheia de Oksana, como se ali vibrasse energia magnetizante. Correm gargalhadas pelas escadas; uma bola que escapa a rolar pelo soalho é perseguida em euforia pelas crianças, como se fossem pará-la aos gritos.
Há risos. Apesar de tudo. Para lá da dor e do horror que Alla, Inna e Olga trouxeram da Bucha natal, nos arredores de Kiev, na Ucrânia. A barbárie do invasor russo não lhes minou a capacidade de sorrir. "Se chorar, nada muda", atira, firme, Olga Sotnichenko, 46 anos e um olhar iluminado de esperança. Acredita que "em dois, três anos, aquilo acabe" - a guerra, a que ainda não consegue chamar pelo nome, sinónimo de morte e aniquilação.
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Quando se pergunta às três mulheres pela cidade que deixaram para trás, fugidas de um terror que nunca pensaram viver, a resposta é um murro: "É simples, já não existe. Está completamente destruída". Olga arregala os olhos vibrantes e põe-se em sentido para explicar que "congelava quando via os aviões" a sobrevoar a casa onde morava com as filhas, de oito e 16 anos, e com o marido, de 39, que as levou até à fronteira com a Roménia e regressou, "para proteger a cidade".
Ficaram as três entregues a voluntários, que há um mês as trouxeram para Portugal, onde eram aguardadas na casa da amiga Oksana Vlasiuk, em Vila Chã, Vila do Conde, teto de pelo menos 12 refugiados nos primeiros dias deste mês - chegaram a ser 21, em março. Toda a ajuda é, pois, bem-vinda: são precisos alimentos, sobretudo, porque a família ucraniana de seis que está há quase 10 anos em Portugal não tem meios para tanto, e pediu ajuda à Autarquia. "Fizemos um apelo para recolha de alimentos à Associação Desportiva de Árvore Forças Segurança Unidas [ADAFSU], que está a ser um grande apoio à Câmara Municipal, porque conseguiu mobilizar a comunidade", agradece a vereadora da Ação Social, Carla Peixoto.
É difícil imaginar o pavor que Olga, enfermeira, mulher valente, traz cravado na memória: a 5 de março, viu soldados russos invadirem-lhe a casa. Sem pestanejar, fez o que sempre fazia "quando havia muitos bombardeamentos": pôs auscultadores nos ouvidos das filhas e fê-las ouvirem música. Enquanto o marido andava com uma arma apontada às costas, a mostrar aos militares tudo o que tinham. Não pilharam: "Só levaram os cartões dos telemóveis, para não conseguirmos ligar a ninguém", descreve a ucraniana, a encolher os ombros de incompreensão.
Olga é mulher de coragem e determinação, e di-lo sem dar conta, num sorriso que emana uma serenidade terna e quase absurda para quem ficou sem nada: "Quero aprender a língua, quero trabalhar e quero que as minhas filhas vão para a escola aqui". Em frente, na cozinha de Oksana - repleta de alimentos angariados pela ADAFSU, em parceria com a Câmara de Vila do Conde e com o grupo de jovens Ajuda Hoje -, Alla Biriuk abre muito os olhos de mar; quase arregaça as mangas: "Não vou ter como viver se não trabalhar". É designer, mas está disposta a pegar "no que aparecer". Todas estão, resume a filha mais velha de Oksana, que vai intermediando a conversa do JN com as três refugiadas.
Os olhos negros de Inna Svyrydkina estão perdidos no vazio. Pouco fala. De repente, o olhar regressa à cozinha, mas continua baço de tristeza. Alla e Olga contam que, em Bucha, "os russos não deixam que se tirem os corpos do chão, e enterraram-se as crianças mortas num parque infantil, para os corpos não ficarem à vista". É então que o rosto endurecido de Inna fica traçado de lágrimas. "Ela sente muitas saudades. É muita angústia, e quer ir para casa", traduz a filha de Oksana, que pede anonimato.
O marido de Inna ficou nos arredores de Kiev. Pôs a mulher e os três filhos na fronteira com a Polónia e voltou para trás, "para defender a cidade". O olhar da ucraniana, que é enfermeira, vagueia por lá; o rosto contrai-se em aflição - não sabe se voltará a ver o companheiro vivo ou a casa onde moravam de pé. As crianças continuam a brincar, e ela haveria de olhá-las e soltar um sorriso triste.