O regresso da guerra em grande escala à Europa pela mão de Vladimir Putin, há um ano, forçou-nos a confrontar ideias feitas sobre o presente do continente europeu e o futuro da ordem internacional.
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Há um ano muitos acreditaram, até à última hora, que a guerra não aconteceria. A irracionalidade dos propósitos bélicos russos saltava à vista: a economia russa tinha um elevado grau de integração económica com o Ocidente, e um assalto frontal ao direito internacional e à Carta das Nações Unidas parecia um passo longe demais, por muito que fosse visível que o regime russo tratava o respeito pela ordem internacional como um mero assunto de conveniência.
Retrospetivamente, todos veem os sinais: a anexação da Crimeia em 2014 e a alimentação furtiva da guerra no Donbass, mas também o ataque à Geórgia em 2008 e a destabilização da Moldova por via da Transnístria, e ainda a subversão de importantes elementos de distensão internacional no âmbito do controlo de armamentos. Pouco interessa acertar no totobola à segunda-feira. Muito mais importante é refletir sobre o que nos dizem esses sinais, sobre como devemos agir hoje.
Diz-nos a tradição que é mais fácil antever como começam as guerras do que como elas acabam. E neste caso o decurso das operações militares trouxe surpresas. O presidente Zelensky não só não fugiu como soube tornar-se icónico e inspirador para um povo determinado a resistir ao invasor. Kyiv não só não caiu em poucos dias, como ficou inviabilizado em poucos meses esse objetivo militar russo. O povo ucraniano não cedeu face à brutal agressão russa, que não hesitou em cometer crimes de guerra para intimidar e desmoralizar. Mais notável ainda, as forças ucranianas conseguiram retomar território e as importantes cidades de Kherson e Kharkiv, demonstrando que a Ucrânia pode ganhar esta guerra. No plano internacional, o compromisso transatlântico do presidente Biden não permitiu hesitações ou ambiguidades. Quanto à União Europeia, longe de ficar paralisada e incerta, demonstrou capacidade de compreender o quadro estratégico e de reagir em conformidade, incluindo pela via do apoio militar. A dependência energética europeia, em relação a combustíveis fósseis russos, foi inteiramente dirimida e deram-se passos decisivos no sentido da autonomia estratégica. Instituíram-se sanções que penalizam os oligarcas, sobre os quais assenta o poder de Putin, e sobretudo que limitam seriamente a produção industrial de um país, que importava as componentes mais tecnológicas da sua indústria militar.
Passado um ano, a posição de Portugal é clara, porque a causa dos ucranianos é justa, e porque não pode haver tibieza na condenação de uma guerra claramente agressiva, injustificada e ilegal.
Mas é preciso não esquecer a batalha maior que se trava na Ucrânia, entre o regresso à lei do mais forte, que caracterizou a primeira metade do século XX, ou a sobrevivência do multilateralismo assente em regras do Direito Internacional, do diálogo e da diplomacia. A derrota da Ucrânia seria a vitória do imperialismo sobre o multilateralismo e, nesse caso, os países como Portugal, e a generalidade das nações pequenas e médias de que é composto o concerto internacional, teriam tudo a perder. Na verdade, até as grandes potências, que assim seriam encorajadas a resolver os seus diferendos e prosseguir as suas ambições pela força, rapidamente se veriam envolvidas em conflitos extremamente custosos em termos humanos e materiais. A sobrevivência e a vitória do multilateralismo e do Direito Internacional são questões decisivas para a política externa portuguesa.
Faz parte dos paradoxos e das tragédias da vida internacional que há momentos em que a paz apenas se conquista pela força das armas. O combate dos ucranianos pelo seu território é também o combate por um Mundo mais decente, mais ordeiro e mais pacífico. Esse combate merece, e tem, todo o apoio de Portugal.
*Ministro dos Negócios Estrangeiros