Em pleno século XXI ainda há quem viaje a cavalo. Não se trata de passeios mas de trajetos de longo curso, muitas vezes de dezenas de milhares de quilómetros.
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São protagonizados por gente que, por opção, adoptou um estilo de vida nómada durante um tempo considerável. Ao longo de meses ou anos, respondem a uma certa urgência de abandonar o modo de vida sedentário e escapar ao mundo moderno para partir rumo ao desconhecido. Em cima de um cavalo.
São aqueles que "têm a coragem de quebrar as correntes das cidades e cavalgar em direcção ao horizonte", diz ao JN CuChullaine O'Reilly, um dos fundadores da Long Rider's Guild, uma associação internacional de exploradores equestres. A associação representa homens e mulheres de todo o mundo que tenham viajado mais de mil milhas terrestres (1609 quilómetros) contínuas numa só viagem a cavalo.
Atualmente, garante CuChullaine O'Reilly, existem "várias centenas".
Tudo é belo porque tudo é lento
Uma das características mais apreciadas e citadas pelos cavaleiros de longa distância é a lentidão com que se processa a viagem. A cavalo viaja-se a uma média de 5 quilómetros por hora. Essa vagareza, frisam, é um dos grandes encantos porque configura um equilíbrio ideal entre progressão e observação do mundo.
Ao esquadrinhar as imensidões da Ásia central no cimo de um cavalo, o escritor francês Sylvain Tesson escreveu algumas das mais brilhantes páginas sobre nomadismo na era moderna. No livro "Petit traité sur l'immensité du monde" lança a questão: "Será que alguém já viu um nómada com pressa?". Essa recusa da velocidade coloca o homem em harmonia com a paisagem. "Porque é que tudo é belo? Porque tudo é lento", anotou na sua "Géographie de l'instant".
"É um ritmo que se presta à contemplação", diz-nos Sea G Rhydr, uma alemã que recentemente atravessou os Estados Unidos a cavalgar da costa oeste à costa leste durante 25 meses.
Günter Wamser, outro alemão, ratifica esta visão. Outrora motoqueiro de longo curso, recorda que o encanto pelas viagens equestres começou quando lhe aconteceu trocar a moto por um cavalo, algures na Guatemala. "Descobri imediatamente uma das maiores vantagens de viajar a cavalo: a lentidão. Viajar num ritmo lento é muito mais intenso do que com velocidade, porque se uma pessoa for devagar a densidade das experiências aumenta bastante", explica-nos.
Günter tomou-lhe o gosto: em cima de um cavalo atravessou a América inteira desde a Patagónia, no extremo sul, até ao Alasca, no extremo norte. Foram mais de 30 mil quilómetros.
"É o ritmo mais indicado para viajar", diz-nos, ao telefone, Arita Baaijens. A holandesa já passou anos a circular de camelo pelas zonas inóspitas dos desertos do Sudão, do Egipto ou da Mauritânia e até escreveu vários livros sobre o assunto. Nos últimos tempos tem-se dedicado mais às viagens a cavalo nas terras remotas do Cazaquistão, China, Mongólia ou Rússia. "Não sou propriamente contra os carros, mas nunca faria uma viagem ou uma expedição de carro ou de moto porque, além do barulho, isso leva a que não estejamos em contacto com o ambiente que nos rodeia e eu gosto de estar em contacto com a natureza", elucida.
Há em tudo isto uma certa vontade de transcender o mundo moderno que se manifesta numa recusa voluntária das deslocações movidas a motor. Nesse ponto, CuChullaine O'Reilly é o mais assertivo. "Durante os últimos cinquenta anos, o mundo foi reduzido à mediocridade pelas máquinas de viagem", dispara durante uma troca de emails com o JN.
CuChullaine O'Reilly é o autor da "Encyclopaedia of Equestrian Exploration" e por muitos apontado como o maior especialista mundial no assunto. Ele tenta completar o raciocínio anterior: "As grandes distâncias que desafiaram os nossos ancestrais são agora de fácil conquista. As terras estrangeiras perderam o seu mistério. Os continentes proibidos são atravessados em horas. Os oceanos são apenas um incómodo superado por um piloto sem rosto, enquanto os passageiros lutam para ficar acordados durante o segundo filme do voo", diz-nos, desarmante.
Ora, nesta era de "viagens anónimas" que nos obrigam a "viajar dentro do casulo de aço de um avião ou de um carro", o cavalo, defende, pode ser "a ligação para o incrível mundo que nos rodeia". "Não consegues ver o mundo se estiveres a voar", alega. Em cima de uma sela a cavalo, o viajante já interage com o mundo "e não viaja à velocidade do som porque se move ao ritmo do vento". "Quando montas no teu cavalo em busca de aventura", prossegue o autor, "não estás mais preso à engrenagem anónima numa máquina voadora, estás livre e disposto a quebrar os limites do mundo cada vez mais restritivo de hoje".
"Que tal regressar ao Brasil de cavalo?"
São várias as motivações que levam os cavaleiros a partir mundo fora, mas não raras vezes é destacada a tremenda influência desempenhada pelo escritor suíço Aimé Tschiffely. No livro "Tschiffely's ride", editado em 1933, relata a sua viagem de Buenos Aires, na Argentina, a Nova Iorque, nos EUA. Consta que essas páginas já inspiraram cinco gerações de cavaleiros de longa distância. O brasileiro Filipe Masetti Leite é um deles.
"Quando eu era criança, o meu pai lia-me o livro antes de me adormecer e eu ficava na minha cama a imaginar como é que seria viajar a cavalo por todos esses países", conta-nos ao telefone.
Vários anos depois, Filipe foi estudar jornalismo para o Canadá e uma lâmpada acendeu-se-lhe em cima da cabeça: "Que tal regressar ao Brasil de cavalo?". Os receios iniciais - "eu não sabia se era possível fazer uma viagem dessas no século XXI" - foram caindo à medida que ia pesquisando sobre o assunto.
A 8 de julho de 2012, saltou para cima de um cavalo em Calgary, Alberta, no Canadá, e meteu-se a caminho, com outro cavalo ao lado para carregar a tralha. Chegou a Espírito Santo do Pinhal, São Paulo, no Brasil, 803 dias depois. E chegou com três cavalos, já que os índios Cherokee, nos Estados Unidos, lhe ofereceram um Mustang.
Pelo caminho, Filipe Leite viveu peripécias do arco da velha. Testemunhou situações como um homem a dar cinco tiros na mulher ou pessoas mortas numa estrada da Guatemala. Recebeu guarida em casa de um traficante nas Honduras.
A maior vantagem em viajar a cavalo, garante, é o facto de precisar de ajuda todos os dias e isso estimular o contacto com as pessoas. "Quase todos os dias eu falava com 10, 20 ou 30 pessoas que ia encontrando e que me ajudavam de uma maneira ou de outra, davam-me água ou um sítio para dormir", revela. "E isso não aconteceria se eu fosse de carro ou de moto directo para um hotel". A cavalo, assegura, "temos um contacto muito maior com os locais do que com qualquer outro tipo de viagem".
Essa generosidade foi, aliás, a maior lição que aprendeu naqueles 803 dias. "A viagem abriu-me os olhos para a quantidade de gente boa no mundo", sintetiza. E conta o caso de uma família pobre que o hospedou na Guatemala. "As pessoas não tinham nada, era uma casinha pequenina, com pouca comida, mas mataram a única galinha que tinham, e que estava guardada para o Natal, para me darem de comer naquela noite. É essa a lição que trago: a bondade do ser humano".
Amar o animal como um filho
Os cavaleiros de longa distância são unânimes em considerar que o maior desafio destas odisseias é zelar pela saúde dos animais. É preciso encontrar água para o bicho beber. Ou erva para comer. E nem sempre é fácil. "Existiram noites em que eu não achava água ou comida para lhes dar e isso cortava-me o coração porque eles tornaram-se meus filhos, eu estava 24 horas com eles", conta-nos o brasileiro.
Sylvain Tesson já escreveu sobre o assunto ao relatar um momento vivido nas planícies da Mongólia: "Descobri um novo prazer: observar o bicho a comer. E nenhuma outra música é tão doce ao ouvido do cavaleiro como o ruído da mastigação do cavalo".
A cavaleira Sea G Rhydr diz-nos que a água coloca vários desafios, mas não cita apenas os momentos da sua escassez. "Às vezes também é difícil lidar com a sua abundância, quando precisamos de atravessar ou contornar rios ou quando cavalgamos e acampamos debaixo de grandes aguaceiros".
Günter Wamser afina pelo mesmo discurso. "A maior preocupação das viagens é sempre o bem-estar dos animais, dar-lhes uma boa alimentação, tempo para descansarem e mantê-los seguros em todos os momentos". O alemão diz que, pela sua experiência, "isso até é mais difícil se viajarmos perto da civilização". "Enquanto os perigos nas zonas selvagens conseguem ser mais controlados (como ficar protegido numa zona de ursos, por exemplo), a segurança fica fora do nosso controle se formos cavalgar para estradas movimentadas. Às vezes", continua, "não temos escolha, e eu lembro-me disso como os piores momentos de toda a viagem".
"Tu tornas-te bastante Zen"
Também por isso os cavaleiros nutrem particular propensão para se deslocarem em zonas remotas, amiúde longe da civilização, isolados, em busca de uma comunhão com os elementos. Os grandes percursos a cavalo na Ásia central ou a camelo nos desertos do Sudão, do Egipto ou da Mauritânia, desencadearam um tremendo impacto em Arita Baaijens. Abriram-se-lhe novas perspectivas a nível existencial. "Se calhar as pessoas não vão perceber isto, mas aprendi no deserto, que eu, Arita Baaijens, não existo realmente, isto é: nós somos todos uma fantasia, achamos que sabemos quem somos mas se viajarmos sozinhos durante um longo período chegamos à conclusão de que aquilo que somos é o que as outras pessoas pensam acerca de nós", explana a holandesa. "Então, se não houver mais ninguém à tua volta, tu tornas-te bastante zen: tu és nada e ao mesmo tempo és tudo", remata.
CuChullaine O'Reilly disse-nos que este tipo de viagem "também te coloca em contacto directo com alguém que tu devias conhecer melhor: tu próprio".
"Mais cedo ou mais tarde todos nós vamos morrer de alguma coisa e isso está fora do nosso controlo", aponta Sea G Rhydr. Também foi por isso que resolveu ir a cavalo do oceano Pacífico ao oceano Atlântico. "Decidi seguir para onde me levam os sonhos e estou disposta a dizer sim à próxima aventura enquanto ainda estiver por aqui".
Tudo isto sem receios nem fobias. Nos 25 meses da sua travessia, a alemã aprendeu que "o mundo é muito mais seguro e muito mais agradável do que muitas vezes somos levados a acreditar". Quando deu por si sozinha em terra inóspita, Sea G Rhydr aprendeu "a não escutar a voz do medo e estar mais confortável com o desconhecido".
Arita Baaijens partilha a mesma óptica. "Deparei com tantas dificuldades e estive sozinha durante várias semanas em zonas sem estradas ou nada de nada", relata. Ganhou firmeza para encarar as incertezas da vida."O que quer que aconteça, conseguirei lidar com isso de uma maneira ou de outra. E isso faz-me sentir bem".
Uma relação longa
Provavelmente vistos como gente mirabolante aos olhos de parte da sociedade do século XXI, incapaz de perceber como é que ainda há gente a viajar de cavalo quando existem aviões, provavelmente encarados como hippies estrambólicos e maluquinhos, serão os cavaleiros de longa distância uma espécie em extinção? A resposta é um rotundo não, diz CuChullaine O'Reilly.
"Há mais de 100 anos que as pessoas têm vindo a prever que a humanidade não precisa mais do cavalo", afirma. E evoca a longa relação dos humanos com os equídeos. "Podemos olhar para trás do luxo do nosso mundo orientado por computadores e ver como tudo, e nada, mudou desde que o primeiro cavaleiro saltou para o dorso do seu cavalo ou da sua égua. Durante 6000 anos, cada geração da Humanidade foi supremamente confiante e arrogante a acreditar que a sua era a expressão última da experiência humana", refere.
"Entretanto", prossegue, "os cavaleiros e cavaleiras da História viram das margens quando se inventaram as rodas, se construíram as pirâmides, se colocaram as linhas rodoviárias, se conduziram carros, e os ecrãs de computador se emparelharam. Ao longo desta vasta e incessável corrente de experiência e esforço humanos, uma coisa perpassou a nossa inconsciência colectiva: a necessidade de liberdade terrestre. E nenhum animal teve tanto impacto para o desenvolvimento da nossa espécie como o cavalo". O cavalo, sintetiza, "transformou os nossos antepassados de peões pesados numa raça de itinerantes".
Como tal, e apesar da passagem de milhares de anos, "as viagens equestres mudaram muito pouco". "Tem havido melhorias no equipamento, mas as leis básicas ainda se aplicam e haverá sempre um punhado de cavaleiros ávidos por explorar o mundo, não importa o ano que é marcado no calendário", vaticina o cavaleiro.