Peças expostas em museus de toda a Europa foram "roubadas" pelos franceses e britânicos durante a colonização.
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A história não pode ser apagada nem reescrita. Não se pode voltar atrás no tempo nem desfazer as ações dos antepassados. Mas, seja por uma questão de "humanidade" ou por "obrigação moral", é possível fazer as pazes com o passado, respeitando o presente. E é isso que vários países ou instituições estão a tentar fazer ao devolver à antiga República do Benim, hoje parte da Nigéria, arte que foi saqueada ou adquirida ilegitimamente durante o período de colonização.
Na semana passada, a Universidade de Cambridge devolveu à Nigéria um galo de bronze roubado no século XIX que pertence à coleção dos "bronzes de Benim", da qual fazem parte peças dos palácios do antigo reinado. Também a França, que se estima ter nos seus museus cerca de 90 mil peças de arte africanas, decidiu restituir 26 obras de arte ao Benim.
"Todos os jovens precisam de se apropriar da história do seu país para preparar o seu futuro e encontrar a sua força e não há qualquer razão para que a juventude africana seja condenada a não ter acesso ao seu património", afirmou o presidente francês, Emmanuel Macron. Foi ele quem, em 2017, mudou o tom do debate sobre a restituição dos artefactos pilhados nos seus países de origem. Já o Jesus College da Universidade de Cambridge, classificou a entrega ontem como uma decisão "simples" de "corrigir um erro".
A restituição de património a países africanos "tem sido objeto de debates nas últimas décadas, com a consciência que as sociedades modernas têm vindo a construir sobre a colonização e sobre a violência exercida pelos poderes imperiais sobre os povos e as nações que dominaram", explicam ao JN Alice Semedo e Celso dos Santos, do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Mas nada "obriga estes países a devolver as obras em questão", recorda Luís Afonso, investigador integrado do ARTIS - Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
"Humanista e altruísta"
"É preciso lembrar que o saque de bens culturais e o seu transporte para o território do vencedor/invasor como espólio de guerra era a regra dos conflitos militares até à convenção de 1954 [onde foram assinados acordos que passaram a proteger obras adquiridas pela força, em contexto de guerra ou conflitos armados]".
Todavia, a questão da exposição de artefactos, estátuas e obras de arte trazida de países africanos ganhou maior expressão depois do movimento Black Lives Matter que aqueceu a discussão sobre a colonização, tendo vários governos procedido a iniciativas de devolução.
"Se pensarmos neste fenómeno numa perspetiva humanista e altruísta", a entrega dos bens faz todo o sentido, diz o académico. "Não faz, se o pensarmos como uma obrigação moral, como um dever. Mas também temos de ter capacidade para saber diferenciar o que é pilhagem e o que é recolha. O que é pilhagem e o que é aquisição".
Ainda assim, acrescenta Luís Afonso, tanto Paris como Londres procederam à devolução do património porque isso "vai ao encontro dos seus interesses e necessidades presentes". E estes "podem decorrer da pressão da opinião pública interna, cada vez mais radicalizada com a ajuda das redes sociais, ou da necessidade de criar condições de acolhimento favorável aos interesses económicos e políticos desses dois países em África hoje em dia".
Para os dois professores da Universidade do Porto "o debate e o desenho das soluções para a restituição a fazer deverão, por isso, acontecer com a participação dos herdeiros dos povos colonizados, dos organismos que hoje os representam e sob a tutela das organizações internacionais".
DECISÃO
Tesouros da Crimeia
A Rússia anunciou que vai dar início a "uma avaliação adequada da violação dos interesses da Rússia" para estimar os prejuízos provocados pela decisão de um tribunal holandês de devolução à Ucrânia de tesouros arqueológicos da Crimeia, coleção de valor inestimável, disputados entre Moscovo e Kiev.
Arte emprestada
A coleção havia sido emprestada pela Crimeia a um museu de Amesterdão. Face à nova situação geopolítica, o museu decidiu reter as peças nos Países Baixos. A coleção, com dois mil objetos de um período vasto entre o século II e o início da Idade Média, tinha sido temporariamente transferida para o museu Allard Pierson por quatro museus da Crimeia, pouco antes da anexação pela Rússia, em março de 2014.