A falta de resposta coletiva da Europa e o risco de os governos de países mais atingidos pela Covid-19 não conterem os efeitos da pandemia na saúde e na economia somam descrença à crise de credibilidade da União Europeia (UE) e podem fazer alastrar o vírus do populismo.
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"Sim, há um rastilho" para o populismo, "não só no Norte e no Centro da Europa, mas também no Sul", adverte a investigadora Cátia Miriam Costa, do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-Instituto Universitário, ouvida pelo JN.
"O risco é evidente. Os instintos nacionalistas em Itália, mas também em Espanha e em todo o lado, serão muito mais fortes se a Europa não estiver à altura", avisou o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, ao diário espanhol "El País", criticando a "timidez" das medidas da UE e a oposição da Holanda, Áustria, Finlândia e Alemanha à emissão de títulos de dívida comuns.
"Se a hecatombe for grande e Espanha não for ajudada" e "se o Governo cair, o Vox (extrema-direita) vai subir muito. Será muito mau para a Europa, como se vê na Hungria e na Polónia, com regimes mais musculados e antidemocráticos", nota Cátia Costa.
Consultor de empresas, Josep-Maria Gascon não quer antecipar um castigo eleitoral em Espanha, porque identifica "uma posição generalizada de apoio e solidariedade institucional" interna. A prioridade é conter a "situação dramaticamente triste".
À perda de vidas, soma-se a de empregos. Só em março, cerca de 834 mil, salienta ao JN, defendendo um "plano Marshall" que ajude Espanha a financiar a economia, "numa frente comum, coletiva e solidária de toda a Europa".
Alimento de extremismo
A falta de solidariedade europeia "alimenta extremismos", alerta Cátia Costa, apontando esse risco "também em Itália". Francesca Cavallo, escritora e empresária italiana, crê por ora que está afastado. "As pessoas confiam no Governo, que tomou medidas para proteger-nos, e Conte goza de grande popularidade", diz ao JN.
"Tivemos imensa sorte por o partido de Matteo Salvini (Liga) não ter conseguido tomar o poder no Verão. Tê-lo a gerir esta crise seria catastrófico - como nos países com líderes populistas como Trump ou Bolsonaro".
"Espero que os italianos (e em todo o mundo) se lembrem disso em próximas eleições e percebam que o voto de raiva é compreensível, mas pode voltar-se contra eles quando surgir uma crise", salienta.
Numa sondagem recente, 72% dos inquiridos italianos criticam a timidez da UE e 77% dizem que a relação do país com a Europa não o beneficia. Noutra, 59% dos dez mil entrevistados em oito países consideram que a União deve atuar de forma mais coesa.
"Este é o momento de provarmos uma maior ambição, unidade e coragem", publicou Conte no italiano "La Repubblica". "A solidariedade deve ser a tinta com que escrevemos esta página da História", vincou. "A falta de solidariedade é um perigo mortal" para a UE, acrescentou o anterior presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker.
A sucessora, Ursula von der Leyen, respondeu-lhe, citando Jean Monnet, primeiro presidente da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), precursora da UE: "A Europa reforçou-se nas crises". E juntou palavras suas: "Estou convencida de que a Europa sairá mais forte desta crise".
"Quando a CECA - e depois a Comunidade Económica Europeia - foi fundada, a Europa fazia a sua própria agenda", observa Cátia Costa. Agora, a UE "não tem capacidade para impor a sua agenda internacional. Em crises como esta - como nas dos refugiados - não está preparada para responder-lhes".
"Não houve sequer a noção de que a pandemia chegaria à Europa e não se preparou minimamente para esta situação", nem para "uma solução comum", o que contribui para aumentar a "grande desconfiança" nas instituições.
Dolorosa falta de empatia
Para Josep-Maria Gascon, a "UE está perante a sua grande oportunidade de recuperar o espírito original", após "muitos anos de um certo descontentamento popular com as instituições europeias e a sua liderança fraca".
"Há um risco muito tangível" de aumento do populismo. "Mesmo pessoas que apoiam o projeto europeu tornaram-se eurocéticas", acrescenta Francesca Cavallo.
Explica o consultor que a "cada dia sem acordo são vidas de cidadãos perdidas". Ao que a escritora acrescenta: "É incrivelmente doloroso ver tão flagrante falta de empatia".
Petições
À Holanda
Uma petição exige ao Governo holandês solidariedade no combate à pandemia e critica a rejeição de "um instrumento de dívida comum para responder às consequências financeiras da crise". Com 684 assinaturas no domingo, contesta o ministro das Finanças, Wopke Hoekstra, que "pediu à Comissão Europeia que investigasse por que países como Espanha ou Itália não criaram "tampões" nos últimos anos para enfrentar a atual crise".
Aos estados e à UE
Um apelo alemão-italiano aos estados-membros e às instituições da UE diz que o bloco enfrenta "um desafio sem precedentes" e que, em países como a Itália, é "a pior crise económica desde a II Guerra Mundial". Já com 16 298 assinaturas no domingo, salienta: "Temos que provar que somos uma comunidade de valores" e "é altura de tomar medidas conjuntas corajosas".