Campanha da norte-americana Kellogg's tem incentivado os clientes, pelo menos desde 2022, a substituírem refeições tradicionais por cereais. Recentes declarações do presidente da empresa provocaram uma enchente de críticas ao multimilionário e expuseram desigualdades. Até a rainha Maria Antonieta foi chamada ao debate.
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O presidente da gigante norte-americana Kellogg’s, do setor alimentício, sugeriu, na semana passada, que famílias com dificuldades financeiras poderiam e deveriam optar por comer cereais ao jantar, de forma a contornarem o aumento de preços.
"A categoria de cereais sempre foi bastante acessível e tende a ser uma excelente alternativa quando os consumidores estão sob pressão. Se pensarmos no custo dos cereais para uma família por oposição àquilo que poderia escolher, os cereais serão muito mais acessíveis", disse Gary Pilnick, citado pelo "The Guardian", durante um debate acerca dos custos elevados dos produtos alimentares.
Na sequência da afirmação, o apresentador do programa, o jornalista Carl Quintanilla, questionou o presidente da Kellogg’s, dona de várias marcas de cereais, sobre se os seus comentários poderiam cair mal aos consumidores, que gastaram cerca de 26% a mais em comida no geral desde 2020. E foi aí que o empresário, não só sublinhou o que havia dito, como foi até mais longe: "Na verdade, está a cair muito bem. Cereais para o jantar são algo que provavelmente está mais na moda agora. E esperamos que assim continue, porque o consumidor está sob pressão.”
A frase proferida pelo multimilionário, que falava ao vivo num programa de televisão da estação norte-americana CNBC, no dia 21 de fevereiro, deixou-o debaixo de fogo nas redes sociais e no espaço mediático, com muitos internautas a divulgarem o salário milionário de Gary Pilnick (um milhão de dólares de salário base anual e mais de quatro milhões em incentivos, de acordo com documentos oficiais) e outros a apontarem balas às injustiças sociais que proliferam nos Estados Unidos.
Entre os críticos, houve também quem apontasse que os cereais representados pelo empresário são dos mais caros do mercado e que o valor nutricional desse tipo de produto é incomparável ao de uma refeição apropriada. Houve ainda quem argumentasse que os custos de uma caixa de cereais e de um pacote de leite, de tamanho familiar em ambos os casos, são equivalentes ao preço de uma lasanha congelada destinada a alimentar a mesma quantidade de pessoas.
"Que comam brioche!"
Há também quem esteja a entender a sugestão do patrão da Kellogg's como um revivalismo do histórico "Que comam brioche!" - resposta que terá sido dada por uma "grã-duquesa" numa França do século XVIII, quando informada de que os camponeses não tinham pão para comer. A frase, comumente e, do que se sabe hoje, erroneamente atribuída à rainha Maria Antonieta, consta da obra "As Confissões" (escrita em 1765, ainda a austríaca era uma criança, e publicada em 1782), do francês Jean-Jacques Rousseau, que recordava a resposta de uma nobre perante a pobreza do povo.
Qualquer que seja a autoria da frase, a verdade é que esta se tornou numa ilustração irónica do distanciamento social que existia entre a nobreza francesa e as classes trabalhadoras, convidadas a comer brioche na falta de pão, mesmo sendo o primeiro mais caro do que o segundo. E, embora no caso do presidente-executivo da Kellogg's, tenha sido sugerido um produto que pode ser mais barato do que as alternativas tradicionais, mantém-se presente o desfasamento económico e social entre ricos e pobres.
"Dar folga ao frango"
A campanha "cereais para o jantar" da Kellogg's vem de trás: em 2022, a empresa desafiou os clientes a "darem folga ao frango" e a passarem a comer cereais ao jantar, argumentando com a riqueza em nutrientes essenciais, vitaminas e minerais dos produtos Kellogg's, que seriam "uma maneira fácil e barata de colocar uma refeição deliciosa na mesa de jantar".
"Na verdade, uma porção de cereais, leite e frutas Kellogg's custa menos de 11 dólares. E se isso não for convincente o suficiente para adicionar cereais ao seu jantar, a Kellogg's está a oferecer a hipótese de ganhar cinco mil dólares e um suprimento anual de cereais icónicos da marca (...) a famílias que façam deles parte da sua rotina", escreveu a companhia, numa campanha lançada em agosto desse ano.
Preço dos cererais nos EUA aumentou 28% em quatro anos
De acordo com o serviço de investigação económica do departamento de Agricultura dos Estados Unidos, os preços dos alimentos aumentaram 9,9% em 2022, mais do que em qualquer ano desde 1979. Também segundo dados oficiais, citados por vários meios de comunicação do país, os preços dos cereais aumentaram 28% nos últimos quatro anos. Isto enquanto a Kellogg's aumentou os preços em 12%, no seu último ano fiscal.
Por cá
Em 2012, num debate na SIC Notícias, a então e ainda presidente do Banco Alimentar contra a Fome fez uma declaração que, à semelhança das aqui relatadas, também não foi bem recebida. Isabel Jonet disse, na altura, a propósito da quebra de poder de compra, que os portugueses não podiam comer bife todos os dias, se não houvesse dinheiro para isso. Numa altura em que o consumo doméstico de carnes vermelhas estava em queda há já pelo menos quatro anos, a frase caiu mal a muita gente e originou várias cartas abertas e petições públicas lançadas na Internet a pedir a demissão de Isabel Jonet do cargo.