Perdem a casa, a vida e o nome: cientistas tentam identificar migrantes que morrem a chegar à Europa
Autoridades internacionais estimam que milhares de migrantes morram todos os anos a tentar chegar à Europa. Depois de perderem tudo em vida, a morte leva-lhes também o nome. Agora, um grupo de cientistas europeus está a envidar esforços no sentido de identificar as vítimas.
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No primeiro dia de 2021, os restos mortais de uma criança vestida com um fato de neve e um colete salva-vidas foram encontrados numa praia no sul da Noruega. Embora o rosto da vítima estivesse irreconhecível, a divulgação do naufrágio do barco de migrantes em que viajava e as suspeitas sobre a sua identidade permitiram que as autoridades norueguesas localizassem um familiar para correspondência de ADN. E, assim, conseguiram chegar à identidade do menino de 15 meses: Artin Iran Nezhad, um dos cinco membros de uma família curdo-iraniana afogada quando o barco sobrelotado onde seguiam naufragou no Canal da Mancha, em outubro de 2020.
Artin faz parte da pequena parcela de migrantes que são lembrados pelo nome depois de morrerem na tentativa de chegar à Europa: das dezenas de milhares de vítimas mortais, apenas cerca de um quinto é formalmente identificada, escreve o "The Guardian". Na arrebatadora maioria, não há uma identidade - quem outrora deixou para trás a casa e perdeu a vida a tentar chegar a novo lar, fica também sem nome. Foi para contrariar isso que uma rede de cientistas forenses recém-criada começou, por meio do desenvolvimento de novas tecnologias, a auxiliar nos esforços de identificação.
Lançado em novembro do ano passado, o programa de Identificação de Vítimas de Desastres Migrantes (MVDI, na sigla em inglês) reúne especialistas de toda a Europa para abordar o que a presidente, a britânica Caroline Wilkinson, da Universidade John Moores (Liverpool), descreve como uma crescente crise humanitária de migrantes mortos não identificados na Europa.
“Acredita-se que pelo menos 25 mil pessoas morreram nos últimos 10 anos cruzando o Mediterrâneo sozinhas. E o número nem sequer inclui aqueles que morrem em terra e noutras rotas”, estima Wilkinson, citada pelo jornal britânico "The Guardian". “Só 25% deles são formalmente identificados – e esses são apenas os casos em que os corpos são encontrados. Haverá milhares de outros corpos que nunca foram recuperados desses desastres de migrantes.”
Marcas de nascença e tatuagens não são meios de identificação legalmente aceites
A MDVI tem como objetivo principal aumentar a capacidade das autoridades europeias de lidar com milhares de mortes nas suas fronteiras, por meio da construção de colaborações de investigação e do aumento do número de pessoas com experiência para ajudar com as identificações.
Uma das iniciativas do projeto é explorar o uso de “identificadores secundários”, como características faciais, marcas de nascença, tatuagens ou piercings de uma pessoa, como um meio de identificação. Embora tais características sejam usadas informalmente, registos dentários, ADN e impressões digitais são atualmente os únicos identificadores legalmente aceites.
Frequentemente, fotografias da pessoa desaparecida ajudam a chegar à identificação das vítimas. Em agosto, o programa recém-criado publicou um estudo que concluiu que a comparação de imagens post-mortem de 29 migrantes falecidos e de fotos tiradas quando esses indivíduos estavam vivos resultou numa taxa geral de precisão de 85%.
Falta de documentação dificulta processo
Ao contrário do que acontece noutro tipo de tragédia, por exemplo em tempestades e furacões, as vítimas desta crise humanitária geralmente não estão na posse de passaportes ou outras formas de identificação que poderiam fornecer aos investigadores pistas sobre a sua identidade. Outro fator, escreve o "The Guardian", é a relutância de amigos ou familiares em envolver-se com as autoridades de países onde suspeitam que os seus familiares tenham desaparecido.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM) da ONU proclamou 2024 como o ano mais mortal alguma vez registado, com pelo menos 57 mortes no Canal da Mancha entre janeiro e outubro. No entanto, os números conhecidos são uma “estimativa por baixo, especialmente porque, em travessias no exterior, há uma probabilidade muito alta de que os barcos simplesmente desapareçam”, ressalva Julia Black, do Projeto de Migrantes Desaparecidos, da OIM.