Um ano após o início da guerra na Ucrânia, o perfil das vítimas russas mudou. Os soldados rasos deixaram de ser a maioria dos "caídos", com os mortos a aumentarem entre os civis mobilizados e os prisioneiros que procuraram a liberdade na frente de batalha.
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Os números de vítimas russas nas guerras são uma incógnita em qualquer dimensão temporal. Anos volvidos sobre o fim dos conflitos, não há dados precisos sobre o total de vítimas no Afeganistão ou na Chechénia, por exemplo. Ou na Segunda Guerra Mundial. O mesmo se passa na Ucrânia, conflito que, segundo estimativas da BBC, custou a vida a cerca de 25 mil russos.
Os números de mortos russos em combate na Ucrânia são muito díspares - de 200 mil vítimas, feridos incluídos, segundo os ucranianos, a seis mil mortos nas contas de Moscovo, ou perto de 40 mil, segundo fontes oficiais europeias. Um levantamento feito pela estação televisiva britânica BBC permitiu identificar cerca de 25 mil vítimas confirmadas da Guerra na Ucrânia. O mesmo trabalho serviu, também, para traçar o perfil dos "caídos" da Rússia e a forma como mudou o tipo de soldado desde o início do conflito, em fevereiro de 2022.
Nos primeiros três meses de guerra, as principais vítimas eram soldados sem patente - cerca de 2300, segundo as contas da BBC. Entre os oficiais, frequentemente jovens e pouco experientes, a guerra reclamou 792 vidas, de acordo com o mesmo levantamento, entre fevereiro e maio de 2022. No mesmo período, morreram cerca de 20 mercenários e 280 voluntários civis.
"Convém lembrar que no início da invasão da Ucrânia muitos soldados russos nem sequer sabiam que iam para uma guerra. Pensavam que estavam a caminhar para um exercício. A indefinição sobre a verdadeira quantidade de mortos no terreno ajuda a prolongar o tratamento desumano", observa o jornalista e comentador Germano Almeida, especialista em política internacional, que publicou recentemente o livro "A Guerra Incomportável", em que analisa o conflito que estalou em fevereiro de 2022.
Um ano depois, o perfil da "vítima" russa na frente de batalha mudou. Nos últimos três meses, segundo a análise da BBC, as tropas profissionais estão a ser poupadas. Morreram 148 oficiais e 398 soldados - as "classes" com menos vítimas mortais na atualidade da guerra ucraniana. O maior número de vítimas, 1236, está entre os prisioneiros de guerra, que aceitaram deixar as cadeias a troco de cerca de mil euros por mês e uma promessa de liberdade se cumprissem seis meses na frente de batalha.
"São enviados para a frente de batalha na expectativa de que sejam mortos", comentou Jack Watling, especialista em questões militares do "Royal United Services Institute" (Rusi), um grupo de discussão britânico focado em questões de defesa, citado pela BBC. "É um dos lados mais negros do crime de Putin na Ucrânia. Revela a falta do mínimo de humanidade por parte do líder russo. O atual poder no Kremlin vê os soldados russos na Ucrânia como números e meros joguetes no interesse supostamente maior da "Grande Nação Russa". São, uma vez mais, carne para canhão", sublinha Germano Almeida.
Dos 30 a 50 mil mercenários que se estima terem sido "recrutados" nos calabouços russos, 1236 terão morrido nos últimos três meses, a grande maioria na batalha por Bakhmut, a mais sangrenta e duradoura desde o início da guerra. "Os militares russos estão a queimar este tipo de tropas a uma grande velocidade", observa Watlin.
Os reclusos chamados à frente de batalha são "dispensáveis" e poupam os militares de carreira, que praticamente só participam, agora, em operações mais "seguras"; ou com mais probabilidade de sucesso. E isso influenciou o perfil da vítima. O número de mortes entre os oficiais desceu para menos de 1/5 enquanto o de soldados é cerca de 15% do que era há um ano. Atualmente, o segundo grupo com mais vítimas é o dos civis mobilizados pela Rússia - 780 - logo seguido dos mercenários da Wagner (752), enquanto o número de voluntários mortos praticamente duplicou, de 280 para 484.
Os números foram coligidos pela BBC em parceria com a Mediazone e com o apoio de voluntários russos, que escrutinaram os órgãos oficiais e visitaram cemitérios e mausoléus à procura de vítimas da guerra. Dada a vastidão do território russo e, a opção russa de recrutar em territórios periféricos ou habitados por minorias étnicas, o número total de vítimas é difícil, senão impossível, de calcular. E, sem notícias da morte, a guerra parece que não existe.
"Putin lançou para a Ucrânia um perfil de soldado proveniente das regiões mais pobres e mais longínquas das elites de Moscovo e São Petersburgo. Isso ajuda a compreender como tem sido possível essa espécie de impunidade do poder do Kremlin", considera Germano Almeida. "O único momento em que terá existido uma perturbação real na sociedade russa em torno dos jovens lançados para a guerra foi quando foi anunciada a mobilização parcial de 300 mil - isso levou a fuga de jovens russos para países vizinhos. Mas quase 16 meses depois de 24 de fevereiro de 2022, a verdade é que Putin continua a poder prosseguir o seu crime na Ucrânia sem uma significativa resistência ou indignação interna da sociedade russa: seja pelo medo, pela ocultação, pela repressão ou, sobretudo por uma pesada e eficaz desinformação e propaganda", acrescenta o jornalista e comentador.
Os dados recolhidos pela BBC assentam em histórias de milhares de vítimas por contar. De soldados rasos nos verdes 20 anos, a cadastrados com anos de pena cumprida e por cumprir, que foram para a frente de batalha tentar a sorte. Acabaram vítimas da guerra de Putin e, em muitos casos, as famílias não sabem o que aconteceu. E talvez nunca venham a saber.