Centenas de milhares de israelitas – incluindo magistrados, advogados, militares, polícias e até agentes da Mossad (serviços secretos) – regressam às ruas para protestar contra os projetos de reforma judicial, suspeitas de darem superpoderes ao governo de direita e extrema-direita de controlo da Justiça.
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Em que consiste a reforma judicial em curso?
Em Israel, não há uma Constituição escrita, mas sim um conjunto de Leis Básicas, que conformam a respetiva ordem constitucional e dão ao Supremo Tribunal de Justiça, já que também não existe Tribunal Constitucional, os poderes de fiscalização das normas jurídicas e dos atos da administração central, estadual e local, tendo também jurisdição, como última instância, sobre os restantes tribunais do país. O governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, de coligação do seu partido de direita Likud com três de extrema-direita e dois partidos ultraortodoxos pretende reduzir os poderes do Supremo e até alterar a sua composição e forma de nomeação, o que os críticos consideram um ataque à independência do poder judicial e ao princípio da separação de poderes.
Porque é que a “lei da razoabilidade” aprovada na segunda-feira é polémica?
Na segunda-feira, os 64 deputados da coligação de direita, ortodoxos religiosos e extrema-direita aprovaram sozinhos a chamada alteração à “lei da razoabilidade”, que a oposição se recusou a votar, abandonando o plenário do Knesset (Parlamento). Com ela, a maioria visa restringir os poderes de fiscalização do Supremo Tribunal de Justiça e de anular normas “não razoáveis” (como os tribunais constitucionais declaram normas inconstitucionais) e decisões governamentais como a nomeação de funcionários e até ministros. Um exemplo muito invocado é a decisão, de janeiro, do STJ, de considerar “não razoável” a nomeação do dirigente ultraortodoxo Aryeh Deri como ministro do Interior e da Saúde, por tido sido condenado por fraude fiscal, não tendo sido preso por se ter comprometido, em acordo judicial, a deixar a política. Os opositores consideram que a alteração visa proteger o primeiro-ministro, que é acusado de subornos, fraude e quebra de confiança.
Que outras alterações poderá haver no Supremo Tribunal de Justiça?
O Supremo Tribunal é composto por 15 juízes nomeados por uma comissão de seleção independente de nove membros, composta por três magistrados do próprio STJ, dois ministros (um deles da Justiça), dois deputados e dois representantes da Ordem dos Advogados, que têm de chegar a acordo. O Governo pretende aumentar para onze os membros da comissão e alterar a sua composição, propondo três ministros e três deputados da coligação, três juízes e dois deputados da oposição, o que lhe garantirá a maioria. Outra reforma importante no funcionamento do STJ visa dificultar – ou mesmo impedir – que possa rever legislação, impondo uma maioria qualificada de 80% dos magistrados, em vez da maioria simples. Por outro lado, o próprio Parlamento poderá anular algumas decisões do Supremo.
Quem protesta contra as alterações?
Desde que, em janeiro, o ministro da Justiça, Yariv Levin, anunciou o conjunto de reformas destinadas a controlar o Supremo Tribunal de Justiça que o Governo considera “tendenciosa e esquerdista”, foi desencadeado, além das iniciativas dos partidos de oposição, um amplo movimento de massas, com manifestações semanais nas ruas juntando centenas de milhares de pessoas especialmente em Tel Aviv, Jerusalém e Haifa. Não são apenas cidadãos comuns: destacam-se magistrados, advogados, mas também militares, reservistas das Forças Armadas e polícias (embora muitos participem nas operações de repressão das manifestações). A questão atingiu tal ponto que o diretor da Mossad (serviços de informações externas), David Barnea, deu liberdade para que os seus agentes discutam o polémico pacote, admitindo a existência de tensões dentro dos serviços secretos, tendo permitido que agentes de níveis mais baixos participem nas manifestações.
Como é vista a reforma judicial no exterior?
A reforma judicial tem provocado reações a nível internacional, com destaque para o principal aliado de Israel – os Estados Unidos da América. “Para que durem, as grandes mudanças numa democracia devem obter um consenso tão amplo quanto possível”, declarou o presidente Joe Biden, criticando a aprovação da lei na segunda-feira, depois de ter apelado ao diálogo ao longo dos últimos meses. Por sua vez, o Ministério alemão dos Negócios Estrangeiros fez saber que acompanha a situação “com grande preocupação” e instou o Governo israelita a promover “um amplo debate com a sociedade que propicie um novo consenso”. Também a União Europeia (UE) se manifestou nesta terça-feira: "A UE está preocupada com o facto de esta lei limitar a capacidade do Supremo Tribunal de proceder a revisões judiciais das decisões governamentais, enfraquecendo assim o seu papel e o controlo judicial", afirmou à Lusa a porta-voz da Comissão Europeia para os Negócios Estrangeiros, Nabila Massrali.