O pico de contestação da última semana ao Governo turco não surpreendeu os portugueses residentes em Istambul, que consideram que a crescente limitação das liberdades e islamização do país há muito vinha gerando descontentamento, sobretudo entre a população laica.
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"Estranho que só tenha sido agora. Estou cá apenas há dois anos e meio e nota-se que o despotismo do primeiro-ministro tem vindo a crescer de uma forma incrível. Se no princípio ouvíamos falar de controlo e de alguma censura, sobretudo a nível cultural, de então para cá as coisas têm-se agudizado imenso", disse Cristina Vilares, professora portuguesa residente em Istambul.
Cristina Vilares, que hoje de manhã descreveu à agência Lusa, por telefone, uma cidade calma, depois de quatro dias de confrontos entre polícia e manifestantes, disse que há na Turquia "um fundamentalismo crescente que justifica" a contestação.
Sublinhando que a atual contestação é o culminar de uma série de protestos que vêm acontecendo há mais de um ano, Cristina Vilares diz que "lhe faz imensa confusão" que um país com a evolução da Turquia esteja a regredir em termos de liberdades.
"Detestaria ver [o país] cair num fundamentalismo como o de alguns países vizinhos", disse.
Cristina Vilares, que foi viver para a Turquia com o marido e as quatro filhas, disse à Lusa que, por viverem afastados do centro, o seu quotidiano não foi perturbado pelas manifestações, que começaram na praça Taksim, em Istambul, e há quatro dias decorrem em várias cidades da Turquia.
No entanto, o marido, que trabalha para uma multinacional, recebeu da empresa um comunicado desaconselhando a família a deslocar-se às zonas "mais quentes" do centro da cidade.
"Numa cidade tão grande e com tanta gente, as zonas mais afastadas têm estado relativamente calmas. Ontem [domingo] houve alguns distúrbios aqui próximo e parece que as manifestações se estão a alargar às áreas menos centrais. Hoje está tudo mais calmo", relatou.
No mesmo sentido, Francisco Gomes da Cruz, um gestor de vendas de Oliveira de Azeméis a residir mais próximo do centro de Istambul, disse à agência Lusa que tem conseguido "fazer a vida normal" durante o dia, explicando que é ao entardecer que a contestação toma conta das ruas.
"Há algumas zonas que foram afetadas e há limitações de acesso às zonas de Taksim e Besiktas, mas [durante o dia] Istambul está normal, sem grandes problemas", disse.
"Tenho ideia que a partir das nove da noite vai repetir-se o que aconteceu ontem [domingo]: luzes a acender e a apagar, pessoas a bateram em tachos e a saírem para a rua com bandeiras da Turquia, carros a buzinar. Esperemos que a polícia não volte a carregar", acrescentou.
Este português considera que a polícia tem "usado a força de uma forma que não é considerada a mais normal" e adianta que as manifestações, que tiveram origem na contestação a um projeto imobiliário previsto para um parque em Istambul, foram o "rebentar de uma bolha".
"Nos últimos tempos o Governo tem tomado algumas medidas que põem em risco o estilo de vida das pessoas laicas, nomeadamente a proibição do álcool. Foi todo um conjunto de acontecimentos que culminou com aquela questão do parque que foi o rebentar de uma bolha", disse.
Francisco Cruz diz que, desde que chegou à Turquia, que percebeu na população o "medo de que este Governo estivesse a tentar fazer com a Turquia o mesmo que se passou com o Irão há alguns anos" e adianta que falar de política naquele país "é tabu".
"Este foi sempre um sistema mais ou menos aberto, mas sempre com uma tendência islâmica", sublinhou.
Francisco Cruz explicou à agência Lusa que existe um grupo de portugueses residentes na Turquia na rede social Facebook, que conta com cerca de 160 membros que se mantém em contacto permanente.
"Nestas situações é melhor confiarmos uns nos outros, porque somos estrangeiros e estamos assustados", disse.
Ainda assim, desdramatizou: "Agora, isto também não está em guerra civil".
Pouco depois de a agência Lusa ter falado com estes dois portugueses, as manifestações regressaram às ruas de Ancara e Istambul.