A Ucrânia reclama a recuperação de território ocupado pela Rússia e especialistas ouvidos pela Lusa dizem que este contra-ataque pode inverter o rumo da guerra, embora admitam poder tratar-se de uma retirada estratégica de Moscovo para preparar o inverno.
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Nos últimos dias, Kiev reclamou a recuperação de mais de três dezenas de localidades, num território de mais de três mil quilómetros quadrados, e anunciou a retirada rápida de tropas russas na zona de Kharkiv e até o Ministério da Defesa russo já admitiu o retrocesso dos avanços das suas forças na região.
A retirada russa da zona sul é a maior vitória desde que a Ucrânia afastou as tropas russas de Kiev, em março, e demonstra a capacidade das suas forças para contra-atacar, tirando proveito do poderio de armas fornecidas pelo Ocidente.
Especialistas em Defesa dizem que este contra-ataque surge numa altura crucial, antecipando o rigoroso inverno na Ucrânia, onde soldados e máquinas de guerra ficam praticamente inutilizáveis em cenários de guerra.
Justin Crump, especialista militar britânico, disse à Lusa que esta ofensiva ucraniana representa uma alteração substancial à atitude das forças de Kiev nesta guerra, marcada pela tentativa de segurar posições e proteger a população, pelo que pode significar um ponto de viragem no conflito.
"Estamos num momento crucial da guerra. O que se passar em Kherson, a principal cidade ucraniana ocupada pelos russos, pode determinar o rumo próximo do conflito. É muito cedo para antecipar cenários, até porque sabemos pouco sobre as reais intenções das forças russas na sua retirada", explicou Crump, autor do livro "Corporate Security Intelligence".
Há vários séculos que os manuais de estratégia militar dizem que o ataque é a melhor defesa e o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse recentemente que a recuperação de terreno perdido é uma prioridade urgente para Kiev, sobretudo tendo em conta que os próximos meses de inverno tornarão qualquer iniciativa bélica muito mais difícil.
Em declarações à Lusa, Lawrence Freedman, Professor Emérito de Estudos de Guerra do King's College, em Londres, disse estar convencido de que estas manobras ofensivas de Kiev são uma tentativa de marcar terreno, antes que esse terreno fique inoperável, devido às quedas de neve e ao frio intenso, que paralisarão máquinas e soldados.
Contudo, Freedman defende que Kiev teve a lucidez de preparar esta ofensiva com meses de antecedência, sobretudo porque conhece muito bem as condições em que a guerra se vai desenrolar nos próximos meses.
"É até possível que estes recuos russos sejam o resultado dessa aprendizagem, sabendo que o inverno não é a melhor altura para estar instalado em terreno inimigo, aguardando melhores condições enquanto se reabastece e se reorganiza", reconhece este autor.
"A ofensiva em Kharkiv não é o resultado de um impulso das forças ucranianas. Foi um ato deliberado e cuidadosamente preparado. Repare-se, por exemplo, nas sequências de movimentações desenhadas para desorientar as forças russas, rompendo linhas de defesa para contornar as posições inimigas", explicou à Lusa o autor do livro, recentemente publicado, "As Políticas das Operações Militares da Coreia à Ucrânia".
Para este estratego militar, a Rússia está a pagar o preço de ter distribuído os seus recursos de guerra por uma larga frente na Ucrânia, desistindo da estratégia de concentrar esforços em pontos cruciais e avançando a partir de posições de conquista.
"Mas não se pense que, pelo facto de a Rússia estar neste momento a perder pontos, que a Rússia perdeu esta guerra", avisa Freedman, alegando que aquilo que pode parecer uma posição de debilidade russa se pode transformar rapidamente numa oportunidade para um ataque destrutivo.
Lawrence Freedman lembra que o Exército russo aprendeu "da forma mais difícil" os segredos de lutar em condições adversas, nos invernos mais duros, fazendo referência à forma como a Rússia czarista venceu as forças francesas de Napoleão Bonaparte, no século XIX, ou como a União Soviética desmantelou as poderosas forças nazis, na Segunda Guerra Mundial.
Concordando com este ponto de vista, ainda assim Justin Crump salienta o impacto na moral das tropas russas, e da própria sociedade, provocado pelas recentes vitórias militares de Kiev.
"Os episódios em Kharkiv nos últimos dias vão certamente criar dúvidas na mente dos comandantes russos, que tenderão a adotar uma postura mais conservadora em futuros momentos deste conflito", disse Crump.
Também Freedman prefere não desvalorizar o "momentum" que vivem as forças ucranianas, com as recentes vitórias no sul do país, dizendo que, se Kiev conseguir aproximar-se de Kherson e iniciar o inverno com um longo cerco àquela que neste momento é uma das mais estratégicas cidades no conflito, a primavera poderá trazer esperança às ambições ucranianas.