Ucranianos que fogem da guerra continuam a inundar a Polónia. Mães e filhos sem pais cobrem todo o chão da estação de comboios de Cracóvia.
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Kraków Glowny, a estação central de comboios de Cracóvia, junto às modernas galerias Krakowska, Polónia, é um lugar a ferver. Enquanto polacas pestanudas bem vestidas bebem café no Starbucks e jovens mochileiros passam apressados para os albergues à volta com as suas mochilas coloridas, filas de famílias ucranianas tensas e um tanto atordoadas continuam a encher o chão frio da estação com os seus olhares parados. São famílias cortadas, quebradas, literalmente: não se veem os homens, os maridos, os pais - todos os ucranianos dos 18 aos 60 anos estão proibidos de sair devido à lei marcial e à mobilização geral pela defesa do país invadido pelos russos, que iniciaram a guerra faz hoje 22 dias -, só se veem as mulheres e as crianças com as caras pequeninas e exaustas.
Uma menina arrasta um Cocas de peluche por uma perna, o sapo parece agoniar, a menina larga-o, e o sapo fica no chão, perdido entre os pés que passam, a esverdear; um rapazinho de ar muito pálido vestido com roupas descombinadas está deitado de barriga no chão, parece brincar com um carrinho preto, mas não, é uma barra de chocolate, parece um Mars; outro menino perto dele olha-o fixamente, só faz isso, olha-o e não se mexe; ao lado está a mãe dele, e duas malas maiores do que ele, mais uma série de sacos plásticos com pacotes de bolachas, pão, sumos, bananas de pele pisada, mas a mãe não desprega os olhos do ecrã digital vertical com os horários dos comboios que estão sempre a mudar; ouve-se um sinal sonoro suave, sai um aviso em polaco, e ao mesmo tempo, numa estranha sincronia oblíqua, veem-se todas as caras a girar, olham umas para as outras, ansiosas, de olhos muito abertos, sem perceber o que é que foi dito em polaco pela voz.
Inna Semenikha, 38 anos, advogada, a cara igual à Agnetha dos ABBA quando a sueca era nova, pega no Andrii ao colo, ele tem 3 anos, estava a olhá-la de baixo com ar de súplica, ela soergue-o mas ele começa logo a espernear e Inna torna a pôr o Andrii no chão. Ela conta o que lhes aconteceu. "Foi logo no primeiro dia [24 de fevereiro], eu estava em Kiev em viagem de negócios, e a guerra estalou, era madrugada, ouvi o eco das bombas à volta do hotel, estava sozinha, imagina a aflição?" O marido de Inna e o filho estavam em casa, em Kryvyi Rih, Ucrânia central, acima da Península da Crimeia que os russos ocuparam em 2014. Assim que amanheceu, Inna, que nunca mais pregou olho, correu para a estação. "Era uma confusão, tudo a gritar, a empurrar, depois entramos sem bilhetes, entrou tudo, estava a ver que não saía dali", diz a mulher em ucraniano, traduzida pela Larysa - a Larysa trabalha para os americanos da Cisco, mas passa agora as manhãs a fazer voluntariado na estação e também ela está exausta. Mas continua: "Bom, ela reencontrou o marido e o filho, o marido chama-se Pavlo, a viagem de comboio demorou 13 horas, e ficaram os três juntos durante duas semanas, a entrar e a sair da cave da casa de uns amigos".
Na terça deixaram Kryvyi Rih, mas só a Inna e o Andrii, o Pavlo ficou para trás a lutar, porque a cidade foi evacuada. Mãe e filho chegaram a Lviv quarta-feira, cruzaram a fronteira a pé - "tanta gente, confusão, crianças a gritar, adultos a gritar, só me apetecia chorar mas não queria assustar o Andrii" -, chegaram ontem de manhã a Cracóvia e depois do almoço já apanhavam o comboio para Viena, na Áustria, seguindo daí para casa de amigos em Itália, onde vão ficar até ver. O único momento em que sorriram foi quando entraram na composição e na foto que tiraram para depois mandar ao Pavlo. Seguiram com uma família amiga, a Olexandra Raspopova, 33 anos, e os filhos dela, Ivan, 15 anos, e o Matuii, de 3. O pequenino tem um ar triste e níveo no seu gorro cor de caramelo, mas o Ivan parece um homenzinho, sentido muito composto, põe um ar sério por demais. O que é que ele quer ser quando for grande? "Quero estudar artes, quero ser ator, sim, um ator como o meu presidente Volodymyr Zelensky". E depois eles todos saem, vão a empurrar as malas de rodinhas, os sacos plásticos a abanar, vão depressa, o Ivan leva o Andrii pela mão, o irmão veste uma jaquetinha que diz atrás em letras arqueadas a azul e vermelho Super-Homem.
Cracóvia, como a capital Varsóvia, está a rebentar. As duas maiores cidades da Polónia já alertaram que podem não ser mais capazes de absorver o fluxo maciço de refugiados ucranianos que ali continua a desaguar. São, até agora, pelo menos 1,6 milhões as pessoas que passaram a fronteira polaca em busca de segurança desde que a guerra começou. Hoje é o 23.º dia da guerra.