"Se houvesse Justiça a minha mãe estaria viva" diz filho de jornalista assassinada
Matthew podia carregar o fardo da vítima. Tem motivos para isso. Mas o jovem maltês, filho da jornalista Daphne Caruana Galizia, prefere transportar a luz que alumia a memória da mãe, assassinada com uma bomba no carro, há cinco anos, pagando com a vida as investigações que denunciaram a corrupção em Malta, especialmente na área da energia, com aparentes ramificações na União Europeia.
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Cinco anos após a morte de Daphne, os irmãos Alfred e George Digiorgio assumiram em tribunal a responsabilidades pelo crime. Em troca da confissão, foram condenados a 40 anos de prisão, quando arriscavam uma pena de prisão perpétua. O "Jornal de Notícias" falou com Matthew Caruana Galizia, em Estrasburgo, França, durante o seminário "Safeguarding Media Freedom: the role of the European Union" - Proteger a Liberdade de Imprensa: o papel da União Europeia (UE) - que juntou jornalistas e representantes sindicais de todos os 27 países da UE.
O dia terminou com a entrega do Prémio de Jornalismo Daphne Caruana Galizia, que pretende ressalvar a importância do jornalismo de investigação e homenagear a jornalista morta há cinco anos por denunciar a corrupção em Malta, um estado mediterrânico membro da União Europeia. A sessão, em Estrasburgo, França, realizou-se dois dias depois de se completarem cinco anos sobre a morte da jornalista, assassinada a 17 de outubro de 2017 e menos de uma semana após a condenação dos autores do assassinato.
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"A condenação dos dois irmãos Degiorgio é um passo no sentido de que se faça justiça pela morte da minha mãe. É importante esta condenação, mas ainda há um caminho longo a percorrer e mais pessoas têm de ser julgadas", disse Matthew Caruana Galizia, em declarações ao "Jornal de Notícias", proferidas à margem daquele seminário em Estrasburgo.
O caso está assente em quatro sujeitos: o empresário Yorgen Fenech, acusado de planear o assassinato, detido em 2019 quando tentava deixar Malta a bordo de um iate privado, os irmãos Degiorgio e um terceiro cúmplice, Vince Muscat, condenado a 15 anos de prisão em fevereiro de 2019. Melvin Theuma, um taxista acusado de ser intermediário entre o mandante e os assassinos, foi amnistiado por ajudar a esclarecer o caso e disse que o empresário Fenech foi o "único cérebro" do crime.
Matthew sublinha que "o julgamento de Fenech é outra parte muito importante do processo, para que se faça Justiça" pela morte da mãe. Sem se alongar sobre o processo em curso, por razões legais, sublinhou que o caminho para a redenção, para a justiça plena, é longo e tortuoso. "O assassinato está intrinsecamente ligado à corrupção que se estende para lá de Malta e se espalha pela União Europeia. Não foi apenas um atentado para calar a minha mãe, foi muito mais do que isso", disse o filho da jornalista.
Matthew, que preside à Fundação Daphne Caruana Galizia, dedicada a perpetuar a memória da mãe, sob o lema "justiça, jornalismo e memória", diz que é preciso que a Justiça dê andamento às investigações dos jornalistas. "O tribunal em Malta considerou que os casos de corrupção denunciados pela minha mãe são reais, que aconteceram. Os casos que ela denunciou, particularmente no setor da energia, foram comprovados. Se a Justiça tivesse funcionado, se tivessem sido feitas as investigações após as denúncias relatadas nos trabalhos da minha mãe, a minha mãe estaria viva, não teria sido assassinada", lamentou o filho da jornalista maltesa, assassinada em outubro de 2017.
"O trabalho dos jornalistas é muito importante. Como vimos aqui neste seminário, tem de ser protegido e ajudado. Mas é muito importante que a Justiça dê seguimento às denúncias, que a Justiça avance com os processos", argumentou Matthew Caruana Galizia. A mãe, a jornalista autora do blogue Running Commentary, investigava uma série de supostos casos de corrupção no governo maltês e as ligações ao narcotráfico e ao crime organizado que se espalharam por toda a ilha, estado da União Europeia, quando foi assassinada.
"Temos de atacar a raiz do problema e acabar com a impunidade da corrupção e da lavagem ao dinheiro ao mais alto nível, que continua a um nível mais vasto e mais elevado", argumentou Matthew Caruana Galizia.
"Falamos muitas vezes de liberdade de expressão como se fosse um dado adquirido, mas não é bem assim", alertou a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, recordando o assassinato de Daphne Caruana Galizia e da russa Anna Politkovskaia, morta em 2006, que dá nome à sala da imprensa da sede da Comissão Europeia, em Bruxelas, enquanto a maltesa "batiza" a sala de imprensa do edifício do Parlamento Europeu, em Estrasburgo.
"Temos de lembrar às pessoas porque a liberdade de expressão é tão importante. Sem meios de comunicação social livres, não pode haver liberdade real", disse Metsola, sublinhando que o Parlamento Europeu está "fortemente empenhado a trabalhar na defesa do jornalismo livre e independente", apesar de reconhecer que há obstáculos difíceis e um crescente número de países, incluindo na União Europeia, que colocam barreiras ao trabalho dos jornalistas.
"Esta é uma luta que podemos e vamos vencer", disse Roberta Metsola, sublinhando a importância do "European Media Freedom Act" (EMFA), uma proposta de regulação apresentada à Comissão Europeia em setembro. "Vai permitir aos jornalistas trabalhar sem medo de perderem a profissão ou a vida", disse a presidente do Parlamento Europeu, recordando que 2100 jornalistas morreram, em serviço ou assassinados, desde 1990. "Proteger o jornalismo, proteger a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão é salvaguardar o nosso modelo de vida. São duas faces da mesma moeda", sublinhou.
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A proposta gerou dúvidas, por ser encarada como uma forma de cercear a atividade jornalística. "Não estamos a regular os média, estamos a regular o espaço dos media", explicou Vera Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência. "Optamos por uma proposta de regulamentação para que seja aplicada em todos os Estados-membros, porque se fosse uma diretiva podia haver países da União Europeia que não a aplicassem", argumentou, defendendo a importância do EFMA. "Temos de fazer alguma coisa para que a imprensa livre e independente se mantenha vívida e pujante", acrescentou.
Em declarações ao JN, Matthew Caruana Galizia reconheceu a importância do EMFA, considerando que "estabelece as bases a salvaguarda do jornalismo livre e independente e a proteção do desempenho da profissão". Uma iniciativa europeia que considerou "muito importante", assim como a instituição do prémio em nome da mãe, que reconhece o melhor que se faz no jornalismo de investigação na Europa a 27.
Este ano, o prémio foi atribuído aos jornalistas franceses Clément Di Roma e Carol Valade pelo documentário "República Centro-Africana: a capacidade de influência russa", que retrata a influência da Rússia em África. "Todos os jornalistas são importantes para percebermos o que se passa na sociedade", resumiu o secretário-geral da Federação Internacional de Jornalistas (IFJ), Anthony Bellanger, na atribuição na cerimónia de atribuição do prémio, na sala de imprensa Daphne Caruana Galizia, que encheu para a cerimónia.