“Se vão acabar por me executar, executem-me agora". A angústia do corredor da morte na Arábia Saudita

O aumento das execuções espalhou o medo entre os detidos
Foto: Rui Oliveira/Arquivo
Dois reclusos egípcios comeram a última refeição numa prisão no norte da Arábia Saudita, sem saber que seriam mortos por crimes relacionados com droga na manhã seguinte. As duas mortes este mês prolongaram a vaga de execuções relacionadas com tráfico, depois de terminada uma moratória sobre a pena de morte.
Os casos suscitaram protestos de grupos de defesa dos direitos humanos e espalharam o medo na prisão de Tabuk, perto da fronteira com a Jordânia, onde os reclusos disseram à AFP que mais de 50 arguidos foram condenados à morte por tráfico de droga e receiam que as suas execuções possam ocorrer a qualquer momento.
“Não sabemos de quem é a vez. Talvez seja eu ou o meu amigo mais próximo”, contou um outro egípcio, Mohammed, de 40 anos, que geria um hotel em Riade antes de ser detido em 2015 por ter recebido um carregamento de mobiliário que se revelou estar recheado de droga. “Não somos avisados com antecedência para nos despedirmos dos nossos entes queridos nem para nos prepararmos psicologicamente”, revelou Mohammed em lágrimas à AFP, por chamada, a partir das instalações de Tabuk. O condenado aceitou ser identificado apenas pelo seu primeiro nome para evitar repercussões.
Desde maio, a Arábia Saudita executou 28 pessoas acusadas de tráfico de droga, de acordo com uma contagem da AFP baseada em declarações oficiais, contra apenas duas em todo o ano de 2023. O número de execuções deste ano inclui os dois egípcios mortos na semana passada em Tabuk: Walid Farouk e Youssef Kleib, que a Agência de Imprensa Saudita (SPA) declarou serem culpados de contrabando de haxixe e anfetaminas.
No total, a Arábia Saudita executou pelo menos 170 pessoas no ano passado, mais do que qualquer outro país para além da China e do Irão. Este ano, o número de execuções deverá ser superior. As autoridades consideram que as execuções são compatíveis com a Sharia - o código jurídico islâmico baseado nos ensinamentos do Corão - e necessárias para “manter a ordem pública”.
Embora os meios de comunicação social estatais não especifiquem a forma como as execuções são efetuadas, a Arábia Saudita é famosa pelas decapitações, o que contribui para a sua reputação proibitiva.
Moratória de curta duração
O príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, governante de facto, está a tentar transformar a Arábia Saudita num centro de negócios e de entretenimento, enquanto estará também a suavizar a sua abordagem à pena capital. Numa transcrição de uma entrevista à revista "The Atlantic", publicada pelos meios de comunicação estatais em março de 2022, o príncipe afirmou que a Arábia Saudita se tinha “livrado” da pena de morte, exceto em casos de homicídio ou quando alguém “ameaça a vida de muitas pessoas”.
No entanto, em novembro de 2022, as autoridades anunciaram as primeiras execuções por crimes relacionados com droga em quase três anos, atropelando uma moratória anunciada pela comissão oficial dos direitos humanos.
“Ficámos aliviados e muito felizes quando soubemos da moratória sobre as execuções em casos de droga. Senti que a vida me tinha dado uma segunda oportunidade”, admitiu Mohammed, o recluso egípcio de Tabuk. No entanto, agora que as execuções recomeçaram, essa esperança desapareceu.
Os meios de comunicação estatais noticiaram 19 execuções relacionadas com droga no final de 2022, antes de o ritmo abrandar consideravelmente, para voltar a aumentar em julho do ano passado.
"Executem-me já"
A Arábia Saudita é um mercado importante para a anfetamina captagon, que causa dependência e que chega do Líbano e da Síria devastada pela guerra, o que levou as autoridades a lançarem uma ação de repressão de grande visibilidade no ano passado, envolvendo uma série de rusgas e detenções.
Duaa Dhainy, investigadora da Organização Europeia-Saudita para os Direitos Humanos (ESOHR, na sigla em inglês), com sede em Berlim, vê uma ligação entre essa operação e as últimas execuções. “Acreditamos que a campanha fez com que as prisões ficassem mais cheias e parece que as recentes execuções são uma tentativa de encerrar alguns casos pendentes”, realça a especialista.
O governo saudita não respondeu ao pedido de comentário da AFP.
Grupos de defesa dos direitos humanos como a ESOHR, a Amnistia e a Reprieve afirmam que as execuções são ainda mais inaceitáveis devido aos problemas do sistema judicial da Arábia Saudita. Estas “falhas gerais” incluem a “exposição dos arguidos à tortura e aos maus tratos e a falta do direito à autodefesa adequada”, notou Dhainy.
É o caso de um recluso egípcio de 34 anos no corredor da morte que, com receio de represálias das autoridades prisionais, pediu para ser identificado apenas como Shadi, um pseudónimo. Motorista de táxi na cidade costeira de Jeddah, Shadi foi preso em 2018 e condenado à morte no ano seguinte por tráfico de droga, acusação que nega.
“Fui injustiçado, nunca tive um julgamento justo e não tive um advogado para me defender”, relatou o condenado, que tem um filho de 10 anos no Egito.
À medida que as execuções acontecem, Shadi disse à AFP que considera insuportáveis os anos passados atrás das grades à espera da sua própria morte. “Esperar pela sentença de morte é uma tortura cruel”, admite. “Se vão acabar por me executar, executem-me agora".
