O político japonês que ousou, sem sucesso, rever ou pelo menos atenuar o espírito de não-beligerância daquela que é a vista com a Constituição mais pacífica do mundo, adotada desde a II Guerra Mundial, foi assassinado a tiro.
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Shinzo Abe foi assassinado durante um comício eleitoral que, como quase todos os outros no Japão, são realizados nas ruas e praticamente sem medidas de segurança, porque a baixíssima taxa de criminalidade, ainda menos com armas de fogo, e a proverbial fleuma nipónica nunca fariam adivinhar tão trágico desenlace. Até esta sexta-feira...
Todas as biografias descrevem os méritos políticos e económicos de Shinzo Abe. Também lhe relembram os escândalos que lhe fragilizaram a imagem e lhe apressaram a retirada do primeiro plano da política japonesa, em 2020, e que o próprio justificou por motivos de saúde, relacionados com uma inflamação intestinal crónica. Já em 2007, a mesma colite ulcerosa obrigara à interrupção abrupta do primeiro mandato do mais jovem primeiro-ministro da história do Japão (tinha 52 anos à data da eleição, em 2006).
Reeleito para segundo mandato (2012-2020) pelo Nippon Kaigi, Partido Liberal Democrata (PLD), Shinzo Abe era descrito como um neoliberal pragmático, a quem se atribui a autoria do plano de relançamento económico do Japão, graças ao chamado "Abenomics", que passou por reformas monetárias e de total liberalização da economia, também com o declarado objetivo de reposicionar o arquipélago na nova ordem regional imposta pela China.
A tensão com o poderoso vizinho do Império do Meio
Foi Shinzo Abe, precisamente, quem apanhou em cheio com a emergência definitiva do Império do Meio como grande potência regional e mundial, o que obrigou Tóquio a todos os realinhamentos, incluindo militares, após décadas de um certo adormecimento.
Além da crescente influência económica chinesa, Abe teve também de lidar com as ambições marítimas e territoriais do poderoso vizinho. Pequim reclama as ilhas Senkaku, que estão sob controlo japonês desde 1895. Não passam de cinco ilhotas, de facto, mas são julgadas de importância geo-estratégica vital no Mar da China Oriental, a norte da costa de Taiwan. A tensão agravou-se em 2012, quando o Estado japonês readquiriu três das cinco ilhas a privados. Foi o incidente mais grave das relações sino-japonesas do pós-guerra e foi por um triz que o primeiro-ministro nipónico evitou um conflito generalizado.
O risco foi elevado e também calculado. Serviu para Shinzo Abe se afirmar como um nacionalista convicto e empenhado contra "As Novas Rotas da Seda", como Pequim chama aos projetos de desenvolvimento que patrocina em países estrangeiros, na Ásia e no mundo, e que Tóquio considera "um projeto geo-estratégico de hegemonia". "Um problema sistémico", como dizia Shinzo Abe.
Pandemia e negócios controversos
Herdeiro de uma família de grandes tradições políticas e conservadoras - um tio-avô, Eisaku Sato, também do PDL, governou entre 1964 e 1972 -, Shinzo Abe também desenvolveu intensa atividade diplomática, sobretudo na hora de restabelecer e reforçar relações com Donald Trump e reforçar a aliança militar que garante a segurança do Japão em troca do estacionamento de arsenal e tropas americanas no arquipélago.
Internamente, a imagem de Shinzo Abe degradou-se progressivamente. O final do segundo mandato foi marcado pela anulação dos Jogos Olímpicos de Tóquio/2020, por causa da pandemia de covid-19 e porque a gestão da crise sanitária, muito criticada pelos japoneses, ajudou a precipitar a saída de cena de um político resistente à polémica. Pediu perdão ao Parlamento, em 2020, por um escândalo relacionado com o financiamento de receções organizadas para os seus partidários.
A Justiça não o acusou formalmente, mas os japoneses não o absolveram. A reputação de Shinzo Abe e da sua mulher, Akie, estavam já indelevelmente manchadas por um negócio imobiliário: os dois nomes e também o do ministro das Finanças, igualmente envolvido, foram apagados de documentos relativos à venda de um terreno do Estado a uma instituição educativa privada ligada ao casal, a um preço quase dez vezes inferior aos dos praticados no mercado.