O que mudou realmente foi só o tom. Os argumentos foram os mesmos, só que agora sem ruído. Faltam 11 dias para as eleições americanas. O curso da corrida não parece mudar.
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Antes do debate, as conclusões do debate: quem ganhou, Donald Trump ou Joe Biden? Ganharam os dois. Ambos estiveram melhor do que aquilo que vimos a 29 de setembro, quando se encontraram pela primeira vez e se comportaram como dois carros, um substancialmente maior e mais berrante do que o outro, e chocaram desenfreadamente entre si.
Este segundo debate, que decorreu na Universidade de Belmont , em Nashville, no Tennessee, foi cívico, equilibrado, moderado, educado, ninguém chamou nomes a ninguém, nem "Joe sonolento" de um lado, nem uma vez, nem "palhaço" do outro, nada - e teria sido um ótimo ponto de partida para lançar as eleições num pais de conduta civilizacional. Mas há um pormenor arreliante nessa esperança: este debate não foi o primeiro, foi o último. E agora, a 11 dias das eleições, já pouco haverá que possa mudar.
CNN diz que o democrata ganhou
A CNN diz que foi o democrata Joe Biden que ganhou o debate. E por margem confortável: 53% contra 39%. O painel constituído por 100 espectadores do canal de notícias dividia-se assim: 37 democratas, 31 republicanos, 32 ditos independentes.
A margem da vitoria de Biden foi menor do que no primeiro debate, um caos cacofónico, furioso e febril que ninguém consegue apagar. Aí, Biden somou 60% das preferências, contra 28% por Trump (12% não souberam responder).
Mas uma segunda sondagem instantânea sobre a noite passada confirmou a tendência. Perante 11 americanos indecisos que a CNN convidou com essa característica rara para um painel ao vivo na Carolina do Norte, foi-lhes pedido que levantassem os braços às perguntas. Quem acha que empataram? Dois braços no ar. Quem acha que Trump ganhou? Zero braços no ar. Quem acha que Biden ganhou? Nove braços no ar.
O debate foi, de facto, tão diferente que Chris Wallace, o jornalista veterano que moderou o primeiro embate de 29 de setembro e saiu de lá com o orgulho todo calcado, disse que estava "com inveja" porque a moderadora desta noite, Kristen Welker, da NBC, serena mas decidida, foi capaz de "manter a ordem". Falando na Fox News imediatamente após o fim da discussão, Wallace sorria com secura e deu-se à melancolia: "Gostava de ter sido eu a moderar este debate. Gostava de ter sido eu a conseguir uma troca real de pontos de vista. Gostava. Mas não, o que eu tive foram centenas de interrupções".
Desta vez havia um botão de desligar
O que mudou, então, daí para cá? Duas evidências. Primeira: Trump, num gesto praticamente inédito na sua carreira política e artística, mordeu a língua e seguiu piamente os seus assessores, que lhe garantiram que não podia falar com fogo e fúria porque isso o prejudicava e, pior, repelia o eleitorado moderado, onde estão as famosas "mulheres suburbanas" que em 2016 se eriçaram com Hillary e cujo voto pode agora decidir esta eleição. Portanto: Trump, desta vez, não foi Trump - pelo menos no tom.
Segunda razão: o debate, num gesto também inédito e caucionário da boa educação, teve pela primeira vez um botão ativo para desligar o microfone de um candidato quando o outro estivesse a falar.
Se isso pareceu ser indiferente para Biden, não o foi claramente para Trump, que viu nisso um botão de pânico que os republicanos não queriam fazer espoletar. Novamente: Trump não pareceu Trump, pareceu uma pessoa praticamente normal.
Trump melhorou e isso serve-lhe para alguma coisa?
Dito com clareza: Trump saiu-se melhor do que no seu desastroso primeiro embate com Biden. Mentiu na mesma, ou disse inverdades ou incorreções, será compulsivo, mas esteve muito melhor no tom. E nunca subiu a voz. E nunca interrompeu. Mas uma mentira é uma mentira, não importa a altura nem a largura do seu tom.
Contudo, que vantagem real tirará Trump da clara melhoria assessorada da sua prestação? Aparentemente muito pouco: a comparação deve ser feita com a prestação de Joe Biden, o seu único oponente, e não uma comparação de Trump com o próprio passado de Trump.
"Bom, foi melhor do que aquele acidente rodoviário de setembro, não acham?", disse o republicano Rick Santorum a rir sozinho na CNN assim que o debate terminou. E insistiu, aparentemente saciado, como se o seu pensamento pudesse ter efeitos realmente retroativos: "Se Donald Trump tivesse debatido na primeira vez como fez agora, controlado, calmo, presidenciável, sim, presidenciável" - e aqui repetiu a palavra e alongou-a a soletrar -, estaria certamente em muito melhor posição".
Mas, faltando agora somente 11 dias para a eleição de 3 de novembro, não está: no agregado da média nacional, segundo a contagem do site Real Clear Politics, Biden continua à frente com uns sólidos 7.9% de vantagem sobre Trump.
Vai tudo sempre dar a três "swing states"
Vejamos em pormenor. Em 2016, três "swing states", Pensilvânia, Wisconsin e Michigan, deram a surpreendente vitória aos republicanos. Foi a famosa "parede azul do "upper midwest" que rachou", tirando o tapete a Hillary Clinton, virando do avesso a eleição. Aí, há quatro anos, Trump venceu nos três estados, na devida ordem, por 0.7%, 0.7% e 0.3%. Mas hoje o cenário é discordante da sua aspiração e Trump não está em primeiro: Pensilvânia (vantagem Biden: +4.9%), Wisconsin (Biden: +4.6%) e Michigan (Biden: +7.8%).
Sentindo o pavio curto da eleição que lhe pode explodir nas mãos, Trump não ignora que os americanos estão a correr às urnas como nunca: 47,5 milhões de pessoas, de um universo total expectável de 150 milhões de votantes, já votaram este ano (correio e voto antecipado presencial) e o número de pessoas que se dizem indecisas, os crónicos 11%, é quase igual ao número de pessoas que comprovadamente mentem nas sondagens.
A pandemia é o maior obstáculo de Trump
Logo no início do debate, a moderadora Kristen Welker leu para os americanos a lista dos horrores: o número de pessoas infetadas nos EUA (8,6 milhões), os milhares que já morreram (228 mil), os milhares que agonizam em situação crítica no hospital (15 mil). O país, disse Welker, "está a entrar numa nova fase perigosa". Biden apanhou a deixa. "Se você não ouvir mais nada do que eu digo esta noite, ouça isso", disse o democrata a olhar diretamente para a câmara: "Qualquer pessoa responsável por tantas mortes americanas não deve permanecer como presidente dos Estados Unidos da América". Foi a primeira de uma meia dúzia de frases sonantes de Biden - que, mesmo assim, não prescindiu das suas pequenas interjeições, que metia amiúde no meio de certas frase de Trump: "Errado!", "Falso!", "Não é verdade!", "Ele está a mentir!", e ainda a muito popular, seguida de reticências ou de exclamação a abanar a cabeça e a sorrir, "Oh meu Deus!".
Trump e Biden digladiaram-se sobre o coronavírus, com o presidente a defender a sua resposta à gestão de uma pandemia que já custou 228 mil vidas americanas. Disse Trump: "Assumo total responsabilidade. Mas não é culpa minha que o vírus tenha chegado cá", sacudindo depois a culpa para o sitio do costume: "A culpa é da China. É uma praga da China. Toda a gente sabe".
Biden argumentou que Trump não tinha "nenhum plano claro" e que "ainda hoje não tem qualquer plano claro" para controlar o vírus, desenrolando depois o seu programa de testes universais e gratuitos, de rastreamento apertado, de uso de máscara como mandato nacional.
Os minutos iniciais de qualquer debate são normalmente os mais importantes, e Trump terá a lamentar que a pandemia, um obstáculo persistente, talvez mesmo o maior, à sua reeleição, tenha marcado a primeira meia hora da discussão. O argumento final de Trump foi que na pandemia e na economia saiu-se muito melhor do que qualquer presidente poderia. Mas, tanto no palco de um debate, como num palco de entretenimento, desejar que alguma coisa seja verdade não significa que seja verdade de todo.
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Por que é que os americanos preferem Biden?
Há mais razões pelas quais Biden está na frente - e esteve sempre -, de acordo com uma sondagem da Universidade Quinnipiac divulgada antes do debate. É que os eleitores preferem Biden sobre Trump em três assuntos fulcrais: no plano da segurança social, com maior presença do estado como regulador; no combate ao coronavírus que está a arrasar a América do presidente negacionista; e na gestão do Supremo Tribunal, onde Trump e a maioria republicana do Senado estão a meter à pressa uma nova juíza no círculo dos nove vitalícios (Amy Coney Barrett), que lhes dará uma vantagem de seis juízes conservadores para apenas três juízes liberais nomeados pelos democratas.
E a economia? Bom, qualquer vantagem no plano económico que Trump já teve sobre Biden, essa vantagem há muito que se foi na enxurrada da pandemia viral.
"Sou a pessoa menos racista nesta sala": quem disse isto?
Biden criticou Trump como "um dos presidentes mais racistas que já tivemos na história moderna". Questionado sobre como responderia aos americanos que estão preocupados com seu histórico racial, Trump disse: "Eu sou a pessoa menos racista nesta sala". E repetiu. E tornou a repetir. Biden, depois de dizer "oh meu Deus", respondeu: "Ele atira gasolina para cima de qualquer incêndio racista. É isso que ele faz. Sempre". E depois disse outra frase sonante, que deu um belo "sound bite": "Este tipo é um apito para cães do tamanho de uma sirene de nevoeiro".
Sobre os planos de saúde, Trump reiterou que queria que o Supremo Tribunal desmantelasse o Obamacare, programa estatal que deu seguro de saúde a mais de 20 milhões de americanos pobres. Fazendo eco dos seus comentários no programa da CBS "60 minutos", que esta semana gravou e do qual se retirou após 35 minutos, desagradado com "a agressividade das perguntas (e a última foi: "Mas qual é o seu plano para a pandemia?"), o presidente disse que o Obamacare "não era bom" e que é preciso "repeli-lo", aprofundando: "O que gostaríamos de fazer é acabar com o Obamacare". Biden disse que apoiaria o Obamacare como presidente, que o pretende expandir e que este seria baseado numa opção pública, chamando-lhe depois, e pela primeira vez, "é o Bidencare".
E os trumpistas saltaram no petróleo
Trump teve depois um momento bom e tentou atacar Biden por endossar uma transição energética que abandone progressivamente os combustíveis fósseis, como o petróleo, argumentando que o plano democrata seria "ruinoso para a economia", colocando em perigo "11 milhões de empregos". Biden enfatizou a necessidade de expandir as fontes de energia renovável e, mais tarde, já depois do debate, disse aos repórteres que os seus comentários sobre o afastamento dos combustíveis fósseis visavam os subsídios do governo para esses combustíveis, não os combustíveis em si.
Os aliados de Trump tentaram imediatamente capitalizar sobre essa admissão de Biden, de que apoia a transição dos combustíveis fósseis em favor de das energias renováveis. Rick Perry, ex-governador do Texas, saltou logo no Twitter com o riso de Muttley: "Olá Texas e Pensilvânia, Joe Biden acaba de admitir que faria a transição da indústria do petróleo, matando efetivamente cerca de 11 milhões de empregos".
O comentário de Biden é uma novidade? Não. A transição do petróleo está a ter lugar há 50 anos e os eleitores veem isso nas suas vidas quotidianas com as indústrias que utilizam novas tecnologias verdes. Biden não dissera nada que não tenha dito antes.
Joe Biden, que faz 78 anos no dia 20 do próximo mês (Trump tem 74), foi particularmente enérgico a estrinchar com os esforços de Trump para o fazer passar por um ícone de esquerda. "Este tipo, ele acha que está a concorrer contra outra pessoa", disse a dado passo o ex-vice-presidente de Barack Obama, que passou décadas a aprimorar a sua reputação de político moderado e centrista. "Ele está a concorrer contra Joe Biden". E continuou: "Eu venci todos os outros candidatos porque discordei deles", referindo-se à sua vitória nas primárias democratas sobre Bernie Sanders ou Elizabeth Warren, os seus rivais mais progressistas dentro do partido.
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Houve um passo em falso de Biden
Biden prometeu aprovar um projeto abrangente de reforma da imigração, abrindo a cidadania americana a imigrantes indocumentados, e que faria isso nos primeiros 100 dias no cargo. Também planeia reformar o sistema de justiça criminal para diminuir encarceramentos, especialmente nas comunidades negra e latina, mais oneradas que qualquer outra. E tanto Trump como a moderadora apertaram com Biden. "Demoramos muito a acertar", reconheceu o democrata. "Mas eu serei o presidente dos Estados Unidos, não o vice-presidente dos Estados Unidos".
E quando Trump pressionou o democrata sobre por que é que ele e Obama não aprovaram algumas dessas reformas, Biden deu uma resposta tímida - ou mesmo pífia. "Porque tivemos um Congresso Republicano", disse e fazendo de seguida silêncio. Na verdade, nos primeiros dois anos de Obama, quando a reforma da justiça criminal não era uma prioridade como agora, os democratas controlavam o Congresso. "Você tem que convencê-los, Joe", disse Trump, condescendente e acertado. "Como fiz com a reforma da justiça criminal, eu tive que convencer os democratas a fazer isso".
Mas depois Biden compensou noutro momento - porque foi empático, porque foi humano, porque foi simplesmente decente - quando se falou da perseguição aos imigrantes na fronteira, em que a polícia ICE, de comportamentos segregacionistas, separa crianças do seus pais, havendo ainda hoje 545 crianças que não reencontraram ainda pai ou mãe. "Mas elas são muito bem tratadas, elas estão em celas limpas", disse Trump, com Biden a retorquir: "Isso é horrível. É simplesmente horrível. E criminoso. É criminoso". E Trump nada respondeu.
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Mudar o tom não muda a eleição
De um modo geral, é improvável, dizem os analistas, que o debate possa influenciar muitos eleitores a ponto de mudar o curso da eleição, o que é claramente uma vitória para Biden, que só tem que manter mais duas semanas a vantagem que dura há muitos meses. Dada a clareza das sondagens, Trump precisava de sacudir a corrida e, de alguma forma, alterar a direção da eleição com o debate desta noite. Não parece que tenha, de todo, conseguido fazê-lo. Mudar o tom não muda a eleição - ou, dito de outra forma, Trump, mesmo que esteja restrito, não deixa nunca de ser Trump.