Menino de 12 anos viu morrer pais e irmãos no naufrágio na Calábria, Itália. As autoridades já confirmaram a morte de 62 migrantes, mas acredita-se que mais de 100 pessoas tenham perdido a vida. Entre as vítimas estão doze crianças, sendo que algumas das que sobreviveram terão perdido toda a família.
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Passadas quase 48 horas após a tragédia humanitária que, de acordo com uma nova atualização, ceifou a vida a pelo menos 62 migrantes - entre eles crianças e bebés -, a praia de Steccato di Cutro, na região da Calábria, permanece repleta de marcas que dão conta da calamidade. Biberões, bicicletas, brinquedos, roupas e mochilas estão espalhados pelo vasto areal, enquanto a principal preocupação das autoridades, auxiliadas por um helicóptero da Guarda Costeira, um navio militar e dezenas de mergulhadores, é encontrar os corpos que ainda não foram resgatados.
Estima-se que 200 migrantes - provenientes do Paquistão, Afeganistão, Somália, Síria, Iraque e Irão - estariam a bordo do pequeno barco de pesca no momento da fatalidade. Oitenta requerentes de asilo foram salvos, contudo, a Organização Internacional de Migrantes acredita que o número de vítimas mortais deverá chegar aos 100. A fatalidade, impulsionada por uma tempestade que descoordenou o barco que transportava os requerentes de asilo, afetou sobretudo os mais novos.
"Há crianças que perderam a família inteira. Estamos a oferecer-lhes todo o apoio possível", assegurou Sergio Di Dato, membro da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), à BBC, ao detalhar que as vítimas, que agora permanecem num centro de acolhimento temporário na cidade de Isola di Capo Rizzuto, "estão muito traumatizadas".
"Alguns deles choravam sem falar, outros apenas olhavam para o vazio, enrolados em cobertores", revelou. "Um menino afegão de 12 anos perdeu toda a família, nove pessoas no total: os quatro irmãos e irmãs, os pais e outros membros da família", lamentou Di Dato.
Famílias desfeitas
No rescaldo do infortúnio, vão-se conhecendo outras histórias de quem sobreviveu, mas viu partir os companheiros da aventura que teve um desfecho trágico. É o caso de uma paquistanesa que perdeu o marido, com quem tinha casado há pouco tempo. "O meu marido...", lamentava a jovem de 21 anos, citada pelo jornal "Corriere della Sera", ao observar o corpo do companheiro coberto por um lençol branco.
Um adolescente de 16 anos, do Afeganistão, viu a irmã de 28 morrer na praia ao lado dele. "Fui salvo, ela perdeu a vida. Não tenho coragem para ligar para meus pais para contar o que aconteceu", referiu o jovem.
Soma-se o caso de um homem de 43 anos, da mesma nacionalidade, que, apesar de ter conseguido sobreviver juntamente com o filho de 14, teve de se despedir forçosamente da esposa e dos outros três filhos. A lista continua. Segundo as autoridades italianas, todos os sobreviventes perderam pelo menos um familiar ou parceiro de viagem. Muitos confessaram aos psicólogos da MSF que se sentiam profundamente culpados por terem deixado os entes queridos para trás, mas não havia outra alternativa.
Entre os sobreviventes encontram-se três turcos, agora detidos, que a polícia acredita estarem por detrás da viagem fatal, estando a ser investigados pelos crimes de homicídio e tráfico humano. Quem sobreviveu conta que os homens conseguiram escapar ao naufrágio quando se aperceberam que o barco não ia aguentar uma mudança de rota de última hora. Os traficantes pegaram nos coletes salva-vidas, que muitos dos migrantes não usavam, e conseguiram nadar até à costa, abandonando os requerentes de asilo à sua sorte.
"Estava escuro, deviam ser umas cinco [horas]. De repente, os contrabandistas, quatro ao todo, quando estávamos a 500 metros da costa, viram luzes. Eles ficaram com medo, pensaram que era a polícia que os esperava. Então mudaram a rota para atracar noutro lugar", recorda uma das sobreviventes do naufrágio, citada pelo diário italiano, acrescentando que após a alteração no percurso não ter corrido como previsto, os indivíduos "atiraram pessoas ao mar", de modo a aliviar o peso da embarcação.
Governo culpa migrantes
Giorgia Meloni, primeira-ministra de Itália, eleita no ano passado com a promessa de conter o fluxo de migrantes no país, expressou no domingo "profunda tristeza" pelo sucedido. "É desumano trocar a vida de homens, mulheres e crianças pelo preço da passagem que pagaram na falsa perspetiva de uma viagem segura", referiu, ao destacar que "a atuação daqueles que especulam sobre estas mortes, depois de terem exaltado a ilusão de uma imigração sem regras, comenta-se a si mesma".
Já Matteo Piantedosi, ministro do Interior, que visitou a praia onde estavam a decorrer as operações de resgate, alertou que "é errado arriscar a vida dos próprios filhos" - palavras que foram criticadas pela MSF.
"Não podemos deixar de afirmar com indignação que as primeiras declarações da primeira-ministra Meloni e do ministro Piantedosi são pouco mais que um jogo de atribuição de culpas, mais uma chapada na cara das vítimas e dos sobreviventes desta tragédia", disse Marco Bertotto, diretor dos programas da MSF Itália, numa conferência de imprensa sobre o naufrágio.
A propósito da tragédia - uma das mais graves na região nos últimos anos -, Meloni deixou claro que o Governo que lidera "está empenhado em impedir as partidas [destas embarcações] e, assim, a consumação destas tragédias, e continuará a fazê-lo, primeiro que tudo exigindo a máxima cooperação aos Estados de partida e de origem".
"O Mediterrâneo é uma gigantesca vala comum"
Nos últimos meses, e na sequência de uma campanha eleitoral anti-migração, o Executivo de Direita tem tentado impedir organizações não-governamentais (ONG) de salvar vidas no Mediterrâneo, afirmando que estas são um fator que atrai migrantes, o que motiva várias críticas por parte das instituições de cariz humanitário.
"Esta é mais uma tragédia a acontecer perto das nossas costas. Isso lembra-nos a todos que o Mediterrâneo é uma gigantesca vala comum, com dezenas de milhares de almas nela", sustentou Francesco Creazzo, da SOS Méditerranée, uma ONG envolvida em operações de resgate no Mediterrâneo central.
"Não há fim à vista. Em 2013, as pessoas disseram 'nunca mais' aos caixões brancos de Lampedusa. Em 2015, disseram 'nunca mais' perante o corpo de uma criança síria sem vida numa praia. Agora as palavras 'nunca mais' nem se pronunciam. Só ouvimos 'chega de partidas', mas infelizmente as pessoas continuam a aventurar-se nesta jornada e continuam a morrer", lamentou Creazzo, numa clara mensagem aos governante italianos.
Também a ONU apelou para que sejam garantidas "rotas seguras e legais" no mar Mediterrâneo, na sequência do naufrágio. "Outro horrível naufrágio ceifou a vida de dezenas de pessoas, incluindo crianças, desta vez na costa de Itália. Repito: todos aqueles que procuram uma vida melhor merecem segurança e dignidade", vincou o secretário-geral das Nações Unidas, o português António Guterres.