União Europeia quer milhões perdidos para Google e Facebook de volta ao jornalismo
A Comissão Europeia faz "um retrato negro" do exercício do jornalismo no Mundo, a que a Europa não está imune. Em face deste cenário, os 27 avançam com a implementação do "European Media Freedom Act" (EMFA), uma proposta de regulamentação que suscita algumas dúvidas mas que declara o objetivo de proteger o exercício livre do jornalismo. E a segurança dos jornalistas, profissão ameaçada também economicamente.
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Em 2020, cerca de 900 jornalistas sofreram ferimentos sérios, alguns infligidos pela polícia. Nos últimos 20 anos, mais de dois mil morreram no exercício da profissão, em serviço em zonas de conflito ou assassinados às mãos de cartéis de droga ou governantes corruptos. Milhares de jornalistas são ameaçados todos os dias nas redes sociais.
"Isto é a realidade. Quando combinado com a politização e a pressão económica sobre os media, a aumentar em quase todo o lado na Europa, temos um quadro negro e um pedido muito forte para ação", comentou Vera Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência. Falava durante o seminário "Safeguarding Media Freedom: the role of the Euroepan Union" - Proteger a Liberdade de Imprensa: o papel da União Europeia (UE) - que juntou jornalistas e representantes sindicais de todos os 27 países da UE, em Estrasburgo, França.
"Vemos problemas nos media em quase todos os estados-membros", alertou Jourová. A pandemia, que abalou o mundo nos primeiros meses de 2020, deu uma forte machadada no negócio da comunicação social, particularmente nos jornais, afetados pelo fecho dos pontos de venda e dos cafés, pontos de leitura. A invasão da Ucrânia, em fevereiro, aprofundou as dificuldades, particularmente na imprensa escrita, que além de todos os outros problemas ainda enfrenta um aumento acelerado do preço do papel, com um dos principais fornecedores, a Rússia, envolvido na guerra.
E isto num contexto, de vários anos, de erosão das receitas publicitárias, que passaram dos meios tradicionais - televisão, rádio, imprensa - para as plataformas digitais, como a Google e o Facebook. Milhares de milhões de euros canalizados para duas empresas que deixam redações à míngua e pressionam para baixo os salários de jornalistas, muitos dos quais, em Portugal, hoje em dia, a auferir o salário mínimo, e a recibos verdes.
"Acredito que o dinheiro da publicidade que passou para as plataformas e agora faz falta para a sobrevivência económica dos media devia ser devolvido de alguma forma", observou Vera Jourová. "Tentámos conseguir isso através de cooperação direta, mas não foi suficiente. Ainda não arranjamos um mecanismo de correção do mercado, mas não acredito que sejam os Estados a pagar, porque os contribuintes já pagaram com os dados privados que partilham com as plataformas digitais", acrescentou a vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência.
"Precisamos de algum tempo para encontrar o caminho, mas acredito verdadeiramente que o dinheiro dos lucros do setor digital devia ir para duas coisas: de volta para os media e para a literacia digital e mediática", disse Jourová, ciente de que não será uma tarefa fácil. "Se calhar não vai ser neste mandato", lamentou, ainda assim, empenhada em apertar o cerco às plataformas tecnológicas.
Liberdade de imprensa para travar autoritarismos
O resultado das falhas da regulação nas grandes plataformas não deixa ninguém indiferente, com a proliferação de falsas notícias e desinformação. "Há uma correlação, que parece muito lógica, quanto menos a confiança nos media maior o efeito das fake news. Isto é um cocktail perigosíssimo", avisou Vera Jourová. "É por isso que temos o European Media Freedom Act, porque acreditamos que os media têm um papel absolutamente central na nossa sociedade", acrescentou.
"Tenho de admitir que o EMFA não resolve o problema principal da falta de dinheiros para os media tradicionais. Isso ainda tem de ser resolvido", reconheceu Jourová. "Mas queríamos fazer alguma coisa para manter viva e pujante a nossa imprensa livre, democrática e independente", acrescentou, lembrando o crescimento de tendências autocráticas na Europa.
"É por isso que no EMFA propomos as regras que diminuem a possibilidade dos governos imporem conteúdos editoriais, usarem spyware contra jornalistas ou pressionarem os jornalistas a revelar as fontes", adiantou a vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência.
"Falamos muitas vezes de liberdade de expressão como se fosse um dado adquirido, mas não é bem assim", alertou a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, recordando o assassinato de Daphne Caruana Galizia, em 2017, e da russa Anna Politkovskaia, morta em 2006.
"Temos presenciado como os jornalistas são pressionados na Europa e no resto do Mundo. Não podemos viver numa bolha", argumentou Dunja Mijatovic, comissária dos Direitos Humanos no Conselho da Europa, presente no mesmo seminário. "A União Europeia era vista como um lugar tranquilo, durante décadas, para os jornalistas trabalharem. Já não é", acrescentou.
"Temos a obrigação de fazer tudo o que está ao nosso alcance para ajudar, porque entendemos que os jornalistas devem poder trabalhar sem se sentirem pressionados ou ameaçados", argumentou Dunja Mijatovic.
"Temos de lembrar às pessoas por que a liberdade de expressão é tão importante. Sem meios de comunicação social livres, não pode haver liberdade real", disse Metsola, sublinhando a importância do "European Media Freedom Act" , uma proposta de regulação apresentada à Comissão Europeia em setembro. "Vai permitir aos jornalistas trabalhar sem medo de perderem a profissão ou a vida", disse a presidente do Parlamento Europeu.
O EFMA versa, também, sobre a transparência da titularidade dos Órgãos de Comunicação Social, de que Portugal é um bom exemplo, com legislação aprovada em 2015, e da transparência da publicidade estatal. "Estamos também a tentar reforçar mecanismos sobre a transparência dos media", revelou Jourová, recusando a ideia de que a União Europeia está a tentar cercear a liberdade de imprensa. "Não estamos a regular os media, estamos a regular o espaço dos media, o ambiente onde podem sobreviver e agir em liberdade. E serem um ator forte no sistema democrático", argumentou a vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência. "Estamos a dar a meios de comunicação reconhecidos o poder de oporem às plataformas digitais quando estas querem moderar os conteúdos produzidos pelos media. Acreditamos que os jornalistas devem ter uma posição forte na matéria e defender os conteúdos próprios", acrescentou.
"Há países que dizem que têm sistemas fortes e que não querem que toquemos nos Órgãos de Comunicação Social. Acredito que não vai ser fácil avançar com este processo legislativo, mas acredito que os media vão ajudar, porque qualquer pessoa ao ler o texto percebe que isto não é algo que queria limitar a liberdade de imprensa ou de expressão ou que limita o trabalho dos media, pelo contrário", disse Jourová, argumentando que a forma como a Comissão Europeia está a agir é tão importante como o conteúdo do EFMA. "Optamos por uma regulação e não por uma diretiva porque queremos ter a certeza que a lei é aplicada da mesma forma em todos os países-membros. Com uma diretiva damos demasiado espaço aos países-membros para se desviarem do objetivo", sublinhou a vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência.