A assinatura do Acordo Integral de Economia e Comércio, entre o Canadá e a União Europeia foi oficialmente cancelada, esta quinta-feira. Uma pequena região belga encravou o tratado aprovado por 28 países.
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Os recentes capítulos da história da Valónia fazem lembrar a pequena e indomável aldeia gaulesa do universo ficcional de Astérix, que resistiu ao Império Romano. A analogia foi rejeitada pelo presidente do Parlamento da Valónia, André Antoine: "Não temos a poção mágica, mas temos a força das nossas convicções".
Os valões mantiveram a rejeição do Acordo Integral de Economia e Comércio (CETA, na sigla em inglês) e forçaram a União Europeia a sentar-se à mesa das negociações, a poucas horas da cimeira com o Canadá, onde o documento deveria ser assinado. O compromisso foi oficialmente cancelado, de acordo com o jornal francês "Le Monde".
Apesar da aprovação pelos 27 governos centrais deste acordo, a Valónia, uma das três entidades federadas belgas, receosa de ver o seu mercado inundado com produtos canadianos, rejeitou o CETA, o que impede a Bélgica de dar o aval a este tratado transatlântico, que só poderá seguir para o Parlamento Europeu com a aprovação de todos os estados-membros.
Apesar de a UE ter acenado com medidas de compensação para os setores que possam vir a ser afetados, a região do sul da Bélgica manteve-se irredutível.
O acordo CETA, a que uns chamam o "cavalo de tróia" do Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla em inglês) entre a UE e os EUA, fica pendurado, em nome da democracia.
O Presidente da Comissão do Comércio Internacional do Parlamento Europeu, Bernd Lange, escreveu na sua conta de Twitter: "O CETA falhou. A UE não é capaz de criar compromisso social, precisa de reorientação para as expectativas dos seus cidadãos".
Os valões não são os únicos no espaço europeu a mostrar reservas. A Roménia e a Bulgária só suavizaram as suas posições anti-CETA depois de o governo canadiano lhes ter garantido um regime de isenção de vistos para a entrada no país. Em Portugal, existem para já sete zonas que se declararam, ainda que simbolicamente, Zonas Livres do CETA. O mesmo aconteceu com cidades europeias como Bruxelas e Barcelona, por exemplo. Em Lisboa a proposta não foi aprovada em assembleia municipal.
Loulé declarou-se Zona Livre de um acordo polémico
A autarquia algarvia de Loulé aprovou, com 20 votos a favor (de 36 deputados municipais presentes) uma moção apresentada pelo socialista Fernando Santos, contra a ratificação do tratado por Portugal. "Sensibilizei-me com esta matéria porque a Europa se está a meter num buraco. Para minha surpresa a moção passou, com votos favoráveis do PS, PSD e BE".
Ao JN, Fernando Santos acrescenta à lista de preocupações, a entrada de substâncias tóxicas no mercado europeu, "por causa dos acordos que o Canadá tem com o México e com os EUA".
"Para ser considerada empresa canadiana basta ter um domicílio postal lá. O que permite a entrada também dessas empresas no espaço europeu e de produtos que colocam em causa a segurança alimentar. Somos zona livre porque não aceitamos a inversão do princípio de precaução, que põe em causa a segurança alimentar", disse Fernando Santos.
Além de Loulé, também os municípios de Mértola, Évora e Palmela, e as freguesias da Pontinha, Famões, Ramada e Caneças, em Odivelas, se declararam zonas livres do tratado comercial com o Canadá.
O que é o CETA?
É um acordo que começou a ser negociado entre os estados-membros da União Europeia e o Canadá em 2009. Prevê a eliminação das tarifas aduaneiras entre os dois lados do Atlântico e os seus defensores apontam um crescimento para a economia europeia de 12 mil milhões de euros por ano. Não há nenhum estudo sobre o impacto económico que possa ter para Portugal.
Um dos pontos mais controversos do CETA estabelece a criação de um mecanismo jurídico, o ICS (Investment Court System), que permitirá às grandes corporações que investem em países estrangeiros processar os Estados, caso os seus interesses possam ser ameaçados pelas políticas públicas daquele estado. O ICS resulta da reformulação do ISDS, um instrumento de direito internacional privado, que foi ferozmente criticado e que tinha sido proposto para o TTIP. O novo sistema introduz algumas mudanças, como a possibilidade de recurso e a existência de um júri nomeado pelos próprios estados. Para a Comissária europeia do comércio, a sueca Cecilia Malmström, este mecanismo será ainda mais transparente que os tribunais nacionais: "Com todos os documentos online e todas as audiências abertas ao público".
Mais de mil acordos comerciais
A UE tem mais de mil acordos comerciais, mas o CETA é especialmente gerador de discórdia. O eurodeputado socialista Pedro Silva Pereira não hesita em defender o tratado. "O acordo cria vantagens importantes para a União Europeia e para Portugal. O desaparecimento das tarifas aduaneiras irá favorecer as exportações portuguesas. Significa boas notícias para setores como o calçado ou a cortiça, e para setores agroalimentares que estão protegidos por indicações geográficas. É toda a economia europeia que perde com este adiamento e a economia portuguesa também, mas não me parece que estejamos no fim de linha".
Uma posição distante da que é assumida pelos membros da Plataforma Não Aos Tratados TTIP/CETA/TISA. "É uma nova relação de poder que se está a tentar estabelecer", defende José Oliveira. "As corporações podem fazer ajoelhar os governos, que passam a deixar de poder governar. O objetivo é ir mais longe - a privatização de todos os serviços. Se nós temos ideia que um dos fatores é a desregulação, estão abertas as portas a crises maiores e mais profundas".
Para a eurodeputada portuguesa do PSD Sofia Ribeiro a campanha anti- CETA promovida por organizações da sociedade civil dos dois lados do Atlântico assenta em críticas infundadas. "Contrariamente ao afirmado por muitas entidades em campanhas de contrainformação, o CETA não requer a privatização de serviços públicos nem impede os Governos de expandirem o seu nível de provisão. Os Estados-Membros podem continuar a manter o controlo sobre determinadas áreas e setores, não são forçados a privatizar serviços e podem continuar a decidir que serviços querem manter universais e públicos. O mesmo se aplica, no que concerne à política laboral. Não há qualquer intromissão nas competências próprias dos Estados-Membros".
Do lado da Plataforma Não ao CETA, Sérgio Pedro diz que o CETA coloca em risco a soberania de Portugal. "Há deputados da Assembleia da República que não conhecem o CETA e mesmo o primeiro-ministro pouca informação tem. O CETA permite a flexibilização das leis de produtos geneticamente modificados, a caducidade dos contratos coletivos de trabalho. Todas as medidas de exploração do gás de xisto através de "fracking" (técnica de fraturamento hidráulico, adotada para obter combustível) estão a avançar. É um plano a 27 que pretende harmonizar as legislações e essa é sempre feita por baixo em termos de proteção dos direitos humanos e da proteção ambiental".